segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Rituais

Sentava-se de pernas cruzadas no meio do duplo circulo desenhado no chão a tinta vermelha como que adormecido. Estava descalço. Vestia umas calças de ganga pretas e o seu peito encontrava-se nu e tinha desenhado um estranho símbolo.
Entre os dois círculos estavam inscritas runas e símbolos cabalísticos copiados com uma precisão milimétrica que havia retirado de um livro que tinha encontrado dias antes no escritório do seu pai onde nunca tinha entrado até àquela altura.
Tinha lido o Livro, com imensa atenção nos últimos dias, uma e outra vez até quase o saber de cor e seguido todos os passos que vinham nele descritos. Tinha, na hora que antecedeu a sua descida para a garrafeira, preparado e bebido a poção que vinha descrita na preparação para o ritual e, depois de desenhado o círculo e as runas, entoado as palavras cerimoniais de invocação.
Invocação de quê não sabia, apenas sabia que o Livro prometia que valia a pena e que a vida dele nunca mais seria a mesma.

*

João tem 15 anos. É um jovem introvertido sempre agarrado a livros que lê sempre que tem oportunidade. Não é mau aluno. Pelo contrário tem excelentes notas em tudo o que não diga respeito a desporto, o que faz com que, juntamente com a obsessão por livros, seja gozado pelos outros rapazes. Não tem grande dificuldade em falar com raparigas embora também não possua grandes facilidades.
Tinha acabado de ser gozado por um rapaz um ano mais velho enquanto falava com uma rapariga, por quem nutria uma paixão secreta, e que se riu do comentário que o outro rapaz fez quando o director o chamou pelo comunicador.
- O seu pai morreu, João. – disse o director quando João ainda nem tinha fechado a porta do gabinete, fazendo com que este estacasse à entrada. – Está dispensado das aulas por hoje. Mandaremos alguém acompanha-lo a casa.
Virou-se sem responder e dirigiu-se à entrada da escola onde um táxi o esperava.
Quando chegou a casa a tia esperava-o na entrada. Tentou abraça-lo mas ele dirigiu-se para o quarto e deitou-se na cama a chorar.
Mais tarde levantou-se e desceu as escadas em direcção à sala onde família e amigos do pai se encontravam e cumprimentando-os agradeceu os pêsames que lhe iam dando.
O dia que se seguiu, o dia do funeral, foi um borrão de imagens indistintas, de tudo o que aconteceu nesse dia a única que se lembra é, já em casa, de ver a tia sentada em frente à lareira e o chamar.
- João – disse numa voz calma – senta-te um bocadinho a fazer-me companhia.
João sentou-se na cadeira oposta à da tia com a mesa de apoio entre eles.
- Agora é tudo teu. – disse-lhe a tia. – É tudo teu e vais ter de aprender a lidar com isso. Com tudo o que isso acarreta. – apontou para uma caixa em cima da mesa – A chave do escritório do teu pai. Agora é teu. Todos os livros, todos os papéis, todos os segredos, toda a nossa família. É tudo teu. Esta chave, as portas que abre e a sala para a qual as portas abrem são a maior herança desta família. Desde que a nossa família chegou a esta terra à mais de 700 anos que a chave é passada para o filho mais velho após a morte do seu portador. Devia ser o teu tio Carlos a passar-te a chave mas, infelizmente, a morte chegou-lhe antes deste momento e a função coube-me a mim. Há coisas que deves saber. Umas aprenderas através dos livros e papéis que encontrares. Outras descobrirás por ti. A maior parte vai-te ser dita por outros que encontrarás mas duas tens que saber agora. Nenhum dos livros pode sair daquelas portas, nunca. A segunda é que, agora, só tu podes lá entrar, mais ninguém poderá nunca cruzar aquelas portas enquanto fores vivo. Agora vai. Pega na caixa. Amanha falaremos mais. Talvez.
- Boa noite tia. – disse. Mas os olhos dela encontravam-se presos nas chamas da lareira e não lhe respondeu.
Subiu ao quarto e pousou a caixa na mesa de cabeceira. Deitou-se na cama e adormeceu a olhar para ela.
Acordou de manha e apercebeu-se que a casa estava demasiado silenciosa. Bateu à porta do quarto de hospedes onde a tia ia ficar e quando não obteve resposta abriu-a. O quarto estava vazio. A cama mostrava o colchão sem lençóis. Ninguém tinha dormido aqui esta noite.
“Adormeceu na sala”, pensou João. Descendo as escadas viu as cinzas frias na lareira mas não havia sinal da tia.
Procurou a governanta e como também não a descobriu dirigiu-se à cozinha e preparou o pequeno almoço. Enquanto tomava o café com leite pensou no que faria. Decidiu ir à escola entregar a justificação que o permitia ficar em casa mais 5 dias apenas como desculpa para sair de casa.
Quando chegou à escola reparou que todos os olhos se viravam para ele. Ouvia comentários serem sussurrados à sua passagem. Entregou a justificação no gabinete do director e ainda pensou ficar mas não conseguia aguentar os olhares por isso voltou para casa.
Ainda não havia sinal da tia quando voltou.
Subiu as escadas em direcção ao quarto para ir buscar o livro que estava a ler mas algo o fez parar em frente ao escritório do pai. As portas em madeira negra com veios avermelhados que outrora o assustaram eram-lhe agora chamativas. Pôs a mão no puxador pela primeira vez em 15 anos e sentiu um arrepio eléctrico pelo braço. Afastou-se da porta e dirigiu-se ao quarto. Nem um minuto tinha passado e João olhava de novo aquelas portas desta vez com uma chave negra como as portas na mão.
Introduziu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um breve clique. Tirou a chave e guardou-a no bolso das calças. Rodou o puxador e abriu as duas portas .
O escritório parecia um lugar fora do tempo. Várias cadeiras forradas a veludo encontravam-se espalhadas pela sala. De um dos lados um sofá de couro preto. Uma secretária digna de um rei ou presidente encontra-se à frente de uma janela com vista para um cenário que não existia, unicórnios, ninfas e faunos estavam representados nos painéis que cobriam as janelas ao fundo um rio corria. Sobre a secretária estava suspenso um candeeiro antigo, provavelmente com mais de dois séculos. Obviamente os anteriores donos do escritório tinham-no decorado ao seu gosto e os seguintes ocupantes tinham decidido não tirar nada, apenas acrescentando o que lhes pudesse fazer falta . O que mais lhe chamou a atenção foram as estantes com livros que se encontravam ao fundo. Livros cujos títulos lhe pareciam estranhos. Duvidava até que conseguisse ler alguns deles, visto serem escritos em línguas que desconhecia. Havia livros de mitologia, codex mágicos, livros de história e ensaios políticos. Numa das estantes descobriu o que seria uma serie de diários. O seu pai tinha o nome na lombada de quatro desse volumes. Pegou no primeiro quando outro livro lhe chamou a atenção. Na lombada castanha tinha escrito:

“João Pereira e Alves”

E por baixo:.

“Tomo I”

Pegou, também, no livro com o seu nome e abriu-o.
Na folha de rosto do volume dizia:

“Para ti meu Filho,
Que te acompanhe na morte,
Como nunca o fiz em vida”

António Pereira e Costa

João dirigiu-se à secretária levando os diários consigo. Quando lá chegou sentou-se na cadeira do pai, talvez de um antepassado mais remoto, ainda com os diários nos braços. Olhou para a secretária. Um pequeno candeeiro, um cinzeiro, um cachimbo com sinais de não ser usado há anos. E um livro. Provavelmente o pai tinha estado a lê-lo antes de ter o ataque cardíaco que o tinha matado. Pousou os diários em cima de um monte de papeis e ficou a olhar para o livro.
Tinha uma capa de couro claro já gasta quebrada por traços azulados como as veias de um braço. Só de olhar para ele via-se que era um livro antigo.
Fez um esforço para não olhar para ele e pegou no seu diário para se distrair do livro.
Abriu-o e leu novamente a dedicatória do pai. Virou as páginas até encontrar a primeira pagina onde pudesse escrever. Pegou numa caneta do porta-canetas do pai e no topo da mesma escreveu a data:

Dez de Março de 19 –

Uma linha abaixo escreveu:

O meu pai morreu há dois dias.

João fica a olhar para a página. Não tem mais nada que escrever por isso fecha o diário. Os olhos voltam a encontrar o livro. Rapidamente pega no primeiro volume do diário do pai e abre-o na primeira página escrita.
O que lê deixa-o perturbado. A data é a mesma mas quarenta anos antes. E a frase igual.

O meu pai morreu há dois dias.

Só que a entrada do pai continua,

Acordei e a casa estava vazia.
Sem mais que fazer senti-me atraído pelo escritório, onde nunca antes tinha entrado.
Um livro esta pousado à minha frente na secretária. Sinto-o a puxar-me de volta a ele sempre que desvio o olhar.

Fechou o diário. O pai tinha passado o mesmo neste dia há quarenta anos. Olhou o livro mais uma vez, levantou-se, apressadamente, e dirigiu-se para a porta. Agarrou o puxador mas antes de o conseguir rodar, estava novamente a olhar para o livro. Sem se aperceber estava de novo sentado na secretaria. Tocou o livro e um arrepio subiu-lhe pela espinha, como que se tivesse sido percorrido por uma corrente eléctrica. Estava assustado mas ainda assim abriu o livro...

*

A última fase do ritual era a pior. Pegou no punhal que tinha trazido do escritório e dizendo novamente o encantamento fez um golpe no braço. A sua voz tremeu mas não vacilou na recitação. Tinha tudo que ser exacto.
Após terminar o encantamento, esperou conforme dizia no livro, por duas horas. Horas essas em que permaneceu em silêncio e de olhos fechados na velha garrafeira que existia por baixo da casa.
Abriu os olhos e viu que nada tinha mudado. Não tinha aparecido nenhum demónio a oferecer-lhe o que quer que fosse em troca da sua alma nem um ser angélico a oferecer-lhe Salvação. Não se sentia diferente em nada.
Levantou-se e sacudindo o pó das calças subiu as escadas que davam acesso à casa.
Estava a ir para o quarto para descansar quando parou à porta do escritório. Queria continuar mas algo o forçava a entrar.
Abriu a porta com a chave que trazia sempre consigo no bolso e entrou.
A cadeira da secretaria estava virada para o quadro, agora uma janela para um outro mundo, onde as ninfas, com risinhos abafados, fugiam dos faunos por entre as árvores e o rio sussurrava por entre as ervas e pedras do seu leito.
Sentiu um cheiro a tabaco no ar que antes não tinha sentido.
A porta fechou-se atrás dele, sozinha, e João voltou o olhar na sua direcção.
Um súbito ranger vindo da secretaria sobressaltou-o.
Virou-se a medo.
“Está alguém aí” disse. Quando tinha descido para a garrafeira estava sozinho em casa, como tinha sido habitual nos últimos dias, mas alguém podia ter chegado entretanto. “Se bem que eu tenho a única chave” pensou.
A cadeira girou e o que viu fê-lo soltar um grito abafado.
“Olá João”, disse quem estava sentado na cadeira, “Não tenhas medo. Não te vou fazer mal.”
“Tu... Tu morreste!” gritou, “Foste enterrado à pouco mais de uma semana! É um sonho, só pode ser um sonho”.
O pai, meio etéreo olhou para ele com um olhar resignado. Por trás dele as ninfas e faunos deixavam as suas correrias e chegavam-se à borda do quadro para melhor ver o espectáculo
“Não meu filho, não é um sonho. Mas tens razão. Morri, fui enterrado e tu fizeste o ritual, como eu o fiz antes de ti quando o meu pai morreu. Mas senta-te, há coisas que precisas saber.”
João aproximou-se de uma das cadeiras e ia sentar-se quando o pai o parou.
“Não João, nessa não. Sim pode ser nessa. A partir do momento em que morri a maldição da nossa família passou para ti. O ritual que fizeste serve apenas para tirares o máximo de proveito dela. Como deves ter notado podes ver-me. Isso é resultado do ritual. Sou a personificação espiritual do homem que era, um fantasma se quiseres. Mas o poder que temos é limitado e estamos confinados a esta sala.”
“Podes também” continuou, “sentir outros seres como eu mesmo que eles não se façam mostrar. Também a magia que ainda resta neste mundo abriu as suas portas para ti. O quê? Sim como no quadro. Todos os homens da nossa família, quer dizer, não todos mas os filhos mais velhos fizeram o ritual após os seus pais morrerem e tiveram os seus conselhos durante a vida até morrerem. Essa é a maldição. Após a morte do pai o filho mais velho só vive por quarenta anos, quer faça ao não o ritual o seu destino passado esse tempo é o mesmo. Com o tempo aprenderás o resto”
Parou e durante minutos ficaram um a olhar para o outro.
Pai e filho. Mestre e discípulo.
Ao fim de longos minutos João engoliu em seco.
“Então somos os dois?” disse.
“Não meu filho. Não somos só os dois.”,
À sua volta João via sombras a tomarem formas, enquanto os seus antepassados se revelavam aos seus novos sentidos.
“Está na hora de conheceres a tua família.”

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana III

[John]
Conheci-a numa noite ao entrar para o metro.
Entrei na carruagem a correr e foi contra ela deitando-lhe os livros que trazia na mão ao chão.
Ela baixou-se para os apanhar e eu baixei-me também para ajudar.
Enquanto o fazia pedi-lhe desculpa. Ela olhou para mim e eu perdi-me nos olhos dela.

[Rosie]
Tive que repetir o que tinha dito porque ele não me parecia ouvir.
Para aí à terceira vez que disse 'de nada' é que ele pareceu acordar.
Passou-me os livros que tinha apanhado e apontou para um deles.
Perguntou-me se gostava do autor. Disse que era um dos preferidos dele. Eu disse que estava a gostar mas que me assustava um bocadinho.

[John]
Mas é essa a intenção não é?, disse-lhe.
Para quê ler histórias de fantasmas se não para nos assustarmos.
Falamos mais uns minutos até ela dizer que estava a chegar à paragem dela.
Ganhei coragem e perguntei se não queria combinar um café.
Ficou a olhar para mim enquanto as portas abriam.
Tenho que sair, disse. E saiu da carruagem. Tentei sair atrás dela mas as portas já estavam a fechar.
Fiquei colado ao vidro enquanto a via afastar-se na direcção da saída e de um grupo de gunas que se encontrava a um canto.
O metro arrancou...

[Rosie]
Deve ter passado uma semana até o ter visto outra vez.
Estava a ir para casa quando alguém gritou na minha direcção.
Não liguei e continuei a andar até sentir alguém a correr na minha direcção.
Olhei para trás e vi-o a vir na minha direcção a gritar 'espera'. Estava ofegante quando chegou a à minha beira.
Olá, disse-me ele, não sei se te lembras de mim.

[John]
Conheci-te no metro no outro dia, disse-lhe.
Sim lembro-me, respondeu.
Disse-lhe que não me tinha respondido ao convite para o café.
O meu namorado é um bocado possessivo, foi a resposta dela.
Um café, disse-lhe, não é nada de mais.
Olhou à volta como que à procura de algo.

[Rosie]
Não havia ninguém à volta na rua.
Há ali um café, disse-me.
Ok, respondi, vamos.
Entramos no café e sentei-me numa das mesas do canto o mais escondida possível.
Ficamos sem dizer nada até a empregada vir à nossa mesa.

[John]
Incrível como era ainda mais bonita do que a imagem que tinha na memória.
Na mesa do café, manchada pelo uso e pelos anos, o seu cabelo ruivo ondulado brilhava debaixo das luzes fluorescentes e os olhos verdes em que me tinha perdido brilhavam de excitação e medo.
A empregada anotou o nosso pedido e quando se afastou da mesa olhei para ela que olhava pela janela.
Sabes, disse-lhe, não precisas de ter medo, só quero mesmo conversar, às vezes é complicado encontrar pessoas com os mesmos gostos.
Não..., a sua voz tremia, não é de ti que tenho medo.
Quando ia perguntar-lhe o que se passava, embora no fundo soubesse o que era, a empregada chegou com as bebidas.

[Rosie]
Pousou o chá verde à minha frente e o café à frente dele.
Preto, sem açúcar.
O cheiro forte do café invadia os meus sentidos e vou sempre recorda-lo.
Acabei o livro, disse-lhe casualmente, tinhas razão a excitação e o medo são o que nos faz continuar.
É como ler um romance e não sentir aquela sensação no nosso coração não é?, disse-me ele.
E as horas passaram enquanto falávamos.
Tenho que ir, disse-lhe olhando para o relógio.

[John]
Pegou num guardanapo, escreveu algo e dobrando-o passou-mo.
Comecei a abri-lo.
Agora não, disse-me.
Tirou a carteira da mala e ia a tirar dinheiro.
Deixa, disse-lhe, eu ofereço.
Agradeceu e pediu desculpa mas tinha mesmo que ir embora.
Eu disse que sim e ia a levantar-me mas ela pediu-me para ficar.

[Rosie]
Saí do restaurante a correr e apanhei o metro.
Já estava atrasada e sabia que isso não ia ser nada bom.
Mas o que estava feito não podia ser revertido.
Nunca devia ter entrado naquele café, e, enquanto parte de mim estava arrependida a outra não.
Estava mais de uma hora atrasada quando cheguei ao encontro com o meu namorado.

[John]
Fiquei a olhar para o guardanapo durante não sei quanto tempo.
Adorei a conversa, dizia, e por baixo um numero de telemóvel, uma hora, e a assinatura, Rosie.
Fiquei no café até chegar a hora indicada no papel e quando chegou escrevi uma SMS e enviei-a.
Dizia simplesmente 'temos que repetir, John'.
Não obtive resposta.
Saí do café e já passando das duas da manha fui para casa a pé.

[Rosie]
Disse-lhe que me tinha atrasado no trabalho.
Sabia que se dissesse que tinha ido tomar café com um desconhecido que ele se passava por isso achei melhor arranjar uma desculpa.
Liga para casa, disse-me, já que chegaste tarde agora vais ficar comigo. Diz que vais ficar com uma das tuas amigas, continuou.
Tentei dizer-lhe que o meu pai não ia gostar de ser avisado assim em cima da hora mas ele não quis ouvir.
Não é com o teu velho que te tens que preocupar mas comigo, disse.
Por isso liguei.
Por isso que estava com ele quando a mensagem chegou.

[John]
Não tive resposta.
Pensei que quando chegasse a casa do café, o que demora mais ao menos quarenta e cinco minutos a pé, ela teria dito qualquer coisa.
Mas nada.

[Rosie]
Foi terrível.
O telemóvel deu sinal de mensagem e embora me tenha apercebido deixei passar.
Talvez ele não tivesse ouvido ou pensasse que fosse de outra pessoa.
Mas não.
Não vais ver a mensagem?, disse-me.
Deixa, respondi, agora tou contigo. Inclinei-me para o beijar mas ele afastou-me e pediu-me o telemóvel.
Tentei argumentar que não devia ser nada importante mas o olhar dele fez-me obedecer.
Nada de importante não é?, disse enquanto me dava um estalo.
Ficaste a trabalhar?, gritou.
Outro estalo.
Temos que repetir? O que é que temos que repetir?, notava-se a raiva na voz dele.
Cada frase era pontuada por um estalo.
John é?, tinha os olhos raiados de sangue, Se descubro quem ele é vamos ver se vai ter vontade de repetir o que lhe vou fazer..
Tentava falar mas não conseguia falar.
Agarrou-me pelos cabelos e meteu-me dentro do carro. Duas ruas acima da minha parou.
Sai, disse, não te posso ver mais hoje.

[John]
Estava atrasado novamente para o metro.
A porta fechou e lá estava ela.
Rosie, comecei a dizer chegando-me à beira dela.
Não fales comigo, disse-me.
A porta abriu e ela saiu a correr.
Saí atrás dela.
Rosie que se passa?, disse enquanto a seguia.

[Rosie]
Não podemos ser visto juntos, disse-lhe, se o meu namorado descobre.
Pôs-me mão no ombro e forçou-me a virar.
Foi então que viu a minha cara.
Rosie foi ele que te fez isto?, perguntou.
Fui assaltada a ir para casa, respondi.
Comecei a chorar.

[John]
Foi ele não foi?, disse-lhe, Rosie não podes deixar que ele te faça isto.
Negou.
Disse novamente que tinha sido assaltada que se quisesse podia perguntar à polícia.
Tinha apresentado queixa.
Mas eu sabia.
Rosie, disse, foi por causa da mensagem?
Olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas.
Assaltada disse.

[Rosie]
Virei-lhe as costas e comecei a afastar-me da estação.
Sabia que se me atrasasse seria castigada.
Agora a mínima coisa servia como desculpa para uma tareia.
Mas não tinha como fugir.

[John]
Porque o defendes Rosie? Confessa, diz o que ele te fez, gritei na direcção dela.
A resposta dela deixou-me gelado.
Comecei a apanhar o autocarro para a evitar.
Para não ir falar com ela.
Às vezes vou ao velho café na esperança de a ver mas também ela deve ter mudado os seus hábitos porque nunca a vejo.
Mas todas as noites pego no guardanapo e leio as palavras que ela escreveu na nossa primeira, e única, saída juntos.
E por momentos sou feliz.

[Rosie]
Porque o amo, foi a minha resposta.
Era o que ele precisava ouvir.
Foi a minha maior mentira mas precisava que ele se afastasse.
Tinha medo do que podia acontecer se não nos afastássemos.
Não por mim mas por ele.
Vejo-o no café onde nos encontramos aquela primeira vez.
Os seus olhos procuram algo e tenho a esperança que seja a mim mas não me posso revelar.
Durmo com o livro de fantasmas na mesa-de-cabeceira.
Sinto que assim o tenho perto de mim.
Leio uma pagina todos os dias, quando consigo abrir os olhos o suficiente para ler.
E nessas alturas, por momentos, sou feliz.


Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

sábado, 3 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana II


O bar encontrava-se meio iluminado.
John sentava-se numa das mesas do canto.
Tinha pedido um whisky e olhava para o copo há dez minutos.
No palco uma loira dançava provocantemente mas até esse facto lhe passava despercebido.

O dia tinha-lhe corrido mal.
O contracto que tinha vindo fechar a Washington com o Departamento de Defesa tinha ido por água abaixo quando o Senado tinha votado contra a entrada dos Estados Unidos na guerra.
Ia ser o grande contracto da sua carreira e a sua maior possibilidade de subir na empresa.
Era importante para ele e para a empresa.
E para a sua mulher.
Sim, também era importante para ela.
Nunca tinha sido frequentador de bares, muito menos este tipo de bares, mas era o mais perto do aeroporto e precisava desesperadamente de uma bebida.

A loira, provavelmente de algum país das ex-Republicas Soviéticas, saiu do palco dando lugar a uma mulher como nunca antes tinha visto.
O cabelo preto e comprido caía-lhe ao longo das costas. A pele em tons de caramelo brilhava debaixo das luzes do palco. E os olhos verdes brilhantes brilhavam.
E, ainda assim, parecia envolta por um nevoeiro que tornava as suas feições baças e mortiças.
Os seus movimentos enquanto dançava eram fluidos e ia tirando a roupa com gestos hipnotizantes e John não conseguia tirar os olhos dela.
Quando saiu do palco o apresentador pediu uma salva de palmas para Ester e o pouco publico do bar aplaudiu.

John voltou a olhar para o copo.
Pegou nele e agitou-o fazendo as pedras de gelo tilintarem ao baterem umas nas outras.
Pousou o copo à espera que o liquido assentasse.
Imaginou a dançarina a dançar nas ondas âmbar do whisky.
Fechou os olhos e deixou a imagem dançar na sua mente.
Quando os abriu ela estava sentada do outro lado da mesa.

"Olá.", disse, "Vi que me olhavas enquanto dançava."
John tentou dizer alguma coisa mas não conseguia encontrar as palavras certas.
"Não te preocupes. è para olharem que eu danço. se não olharem estou a fazer algo mal. O que te traz cá?"
“Errr… Problemas… No trabalho… Uma reunião que correu mal. Ainda tinha tempo para o avião de volta a casa. Precisava de beber qualquer coisa.”
“Fizeste bem. E ainda tens mais? Tempo quer dizer. Saio agora e podia ajudar-te a esquecer esses problemas.”
“Eu… Eu sou casado.”
“Parabéns. Mas é só uma dança. Nada de mais.”
John pensou na mulher. Pensou no dia que tinha tido.
Passado uns segundos disse timidamente.
“Quanto?”
Ela sorriu.
“Para ti, querido, nada.”, fez uma pausa, “A ti só peço que não me esqueças.”
“Não acho que isso seja difícil…” disse.
“Mesmo? Então vamos.”, disse, levantando-se da mesa.

“Sei que não é muito” disse, envergonhada, ao entrar no quarto, “mas o meu estilo de vida decaiu um bocado nos últimos anos.”
“Não te preocupes. É bastante… acolhedor.”, disse John olhando à volta
O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama, um cadeirão velho num dos cantos e uma mesa à beira da porta.
“É uma merda mas serve. Senta-te no cadeirão. Pode não parecer mas é confortável.”
John sentou-se.
Ela tirou o casaco e começou a dançar.
Não conseguia tirar os olhos dela e por momentos tudo desapareceu.
O contracto, a empresa, a mulher, o quarto, tudo.
Durante aquele momento só ela existia e só ela importava.
Ela aproximou-se dele e sentando-se no colo dele beijou-o suavemente e sussurrou-lhe:
“Adora-me.”

E ele assim o fez.
E soube naquele momento que nunca a iria esquecer.
E num momento tão depressa como começou a dançar, parou.
Ao sair do quarto John virou-se para traz e disse:
“Obrigado Ester.”

Estava a entrar para o avião quando o telemóvel tocou.
Um bombista tinha explodido a embaixada dos Estados Unidos e o Senado tinha reunido e decidido que afinal os Estados Unidos deviam entrar na guerra.
O contracto estava feito. O seu sucesso garantido.
Sorrindo, sentou-se no seu lugar e fechou os olhos.
Passados uns minutos estava a dormir.
E sonhou.
Sonhou com ela.

No bar, enquanto dançava, brilhando como se um fogo ardesse dentro dela, fechou os olhos.
Na sua cabeça formou-se um pensamento:
“Ishtar, John, o meu nome é Ishtar. E obrigada tu.”



Ishtar é a deusa babilónica e assíria da fertilidade, amor, sexo e guerra.
A cidade que lhe era consagrada Uruk era chamada a cidade das cortesãs e ela mesma conhecida como Cortesã dos Deuses.
Mais tarde esta deusa foi assumida também na Mitologia Nórdica como Easter - a deusa da fertilidade e da primavera.
É irmã gémea de Shamash e filha do importante deus Lua - Sin, e é representada pelo planeta Vênus.
Considerados uma das maravilhas do mundo, os Portões de Ishtar, na Babilónia, foram transportados para um museu na Europa - Museu de Berlim. Uma réplica encontra-se no Iraque.
Juntamente com os leões representados no portão outro dos seus símbolos sagrados é a estrela de oito pontas.
Ishtar tinha alguns rituais de carácter sexual, uma vez que era a deusa da fertilidade, incluindo a chamada prostituição religiosa, no qual o acto sexual servia de ritual sagrado, outros rituais tinham a ver com libações e outras ofertas corporais.
Um ritual importante ocorria no equinócio da primavera, onde os participantes pintavam e decoravam ovos (símbolo da fertilidade) e os escondiam e enterravam em tocas nos campos. Um resquício por trás desse antigo ritual talvez seja o dos ovos de Páscoa, embora não exista uma prova concreta associando os dois rituais. De qualquer forma, em muitas culturas o ovo é considerado um símbolo de fertilidade.



Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

domingo, 27 de junho de 2010

Projecto 23 - Semana I

Dava um dos meus passeios nocturnos quando a vi pela primeira vez.

Há duas semanas que não conseguia dormir e que vagueava pelas ruas da cidade durante horas.
Era a primeira vez que ia para aquela parte da cidade a pé à noite.
Durante o dia as ruas eram percorridas por executivos a caminho dos seus escritórios, pelas pessoas que procuravam pechinchas nas lojas de discos e pelos artistas de rua que actuavam por umas meras moedas.
À noite, com as lojas fechadas, a atracção era outra. E a clientela também.
Ainda hoje não sei o que me levou a percorrer aquela rua mas o certo é que estava lá.
Foi aí que a vi.

Estava encostada ao beiral da porta de uma lavandaria.
Tinha o cabelo castanho cortado curto e os lábios excessivamente pintados.
Os olhos vazios reflectiam uma miríade de sentimentos. Dor e medo eram os mais fáceis de identificar.
Vestia uma saia demasiado curta e um top que acentuava a forma dos seus pequenos seios.
Só quando me aproximei que reparei que era jovem, jovem de mais.

Deve ter reparado que olhava para ela pois virou-se para mim.
“Queres divertir-te?”, disse-me tentando parecer mais segura do que na verdade estava. Conseguia ver isso nos seus olhos.
“Não.”, respondi. “Mas não me importava de ter companhia para um café.”
Olhou para mim confusa.
“Err... Não sei se,,,”.
“Não te preocupes.”, calmamente enquanto apontava para o café do outro lado da rua. “Está aberto toda a noite. Detesto tomar café sozinho e não te faço mal. Prometo.”
Finalmente assentiu e dirigimo-nos ao café.

“Pede o que quiseres.”, disse ao sentar-me. “Pago eu.”
Pediu um hambúrguer com queijo e bacon, uma dose de batatas e um batido de chocolate.
Para mim pedi só um café.
Ficamos em silêncio, a olhar pela janela, enquanto a comida não vinha.
Ia a meio do hambúrguer quando levantou os olhos da mesa e me disse com uma voz que revelava a sua idade.

“Já não comia assim ao tempo. Há duas semanas que como atum e pão. E bebo água.”
Foram as palavras que me revelou primeiro.
Ao longo da noite fui descobrindo mais coisas.
Chamava-se Allison mas gostava que lhe chamassem Allie.
Tinha catorze anos e tinha fugido de casa no dia em que os fez. Tinham passado três meses.
De recordações tinha trazido o cartão de crédito da mãe de onde tinha levantado 800 euros antes de ter sido cancelado e um colar que a avó lhe tinha dado antes de morrer.
Tinha fugido porque era mal tratada. O pai tinha morrido quando ela tinha onze anos e as coisas não tinham sido más até a mãe se voltar a casar o ano passado.
Foi aí que tudo começou.
Quando a mãe saía de casa o padrasto batia-lhe. A mãe não se acreditava e dizia para se parar de meter em confusões na escola. Outra das recordações que tinha trazido do seu último aniversário em casa, disse-me ela, tinha sido acordar com ele em cima dela.
“Disse-me para não fazer barulho. Que ia gostar. Que só ia doer um bocadinho. Disse-me isto enquanto tentava enfiar o caralho dentro de mim. Foi aí que decidi fugir.”, como me feriram estas palavras.
Quando chegou à cidade começou por dormir onde estivesse seca e abrigada do vento mas um dia encontrou outras raparigas e elas acolheram-na.
Eram protegidas por um homem a quem chamavam Pai.
“Não é irónico?”, disse-me.

Os primeiros tempos nem foram maus.
Tinha-lhes dado o dinheiro todo que tinha e não precisou de se preocupar com nada.
“Passado um mês pediram-me mais dinheiro mas eu não tinha. Disseram-me que se não arranjasse que tinha que ir para a rua. Vendi o colar da minha avó. Não faz ideia o que me custou fazê-lo. Era ouro branco com um coração com um A em dourado. Chamava-se Alexandra e deu-mo antes de morrer.”
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Perguntei-lhe onde tinha sido e reconheci o nome da casa de penhores.
“Mas o dinheiro não chegou. E ameaçaram-me novamente e sesta foi a única solução que arranjei.”

Ficamos a conversar até o dia começar a clarear.
Enquanto ela ia à casa de banho paguei a conta e pedi que me embrulhassem uma fatia de tarte.
Dei-lhe a tarte juntamente com um dos meus cartões.
“Jornalista? Um dia ainda escreve sobre mim.”
Sorri e ela sorriu-me de volta.
Fui a carteira e dei-lhe cem euros que tinha levantado após pagar a conta.
“Não posso aceitar. Já me deu demais.”
“Pelo teu tempo e companhia”, disse.
Sorriu novamente e virando-me costas desceu a rua em direcção a lado nenhum.

No dia seguinte fui à loja de penhores mas o colar já não se encontrava lá.
Tinha sido comprado por uma rapariga de cabelo castanho curto.
Passados uns dias recebia uma carta no correio.
Era dela.
Após a nossa conversa tinha ido para a porta da loja esperar que ela abrisse para comprar o colar de volta.
“Não podia sair da cidade sem ele.”
Tinha voltado a casa e confrontado a mãe e o padrasto e desta vez a mãe ficou do lado dela.
“Foi o meu anjo salvador.”, terminava ela.
Junto com a carta estava o dinheiro que lhe tinha dado e um vale para uma fatia de tarte num dos cafés da sua cidade que dizia a caneta ”Espero a sua visita.”.

E no fundo da carta.

“P.S.: Escreva sobre mim.”


Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Atrás dos seus olhos

A primeira vez que a vi não lhe prestei muita atenção.

Na verdade demorou até eu perceber que a rapariga que a noite em que me apaixonei por ela não tinha sido a primeira vez que a tinha visto.
Só mais tarde depois de muito pensar nela é que fiz a ligação entre a rapariga da recepção na embaixada e aquela outra rapariga de há tantas noites atrás.
Não havia diferença nenhuma nela.

O cabelo castanho escuro continuava longo e ondulado em contraste com a pele que continuava branca.
O vestido comprido em tons de preto e vermelho que trazia naquela primeira noite em que a vi tinha sido substituído por outro mais curto e inteiramente preto. Mas o estilo mantinha-se.
Confesso que me apaixonei por ela no momento em que a vi naquela sala, sem saber que não era a primeira vez que a via.
O pior é que ela se lembrava de mim.
Estava encostado a um canto a pensar que desculpa poderia ter para ir ter com ela quando a vi a vir na minha direcção.
Desculpa-me, disse ela, não nos conhecemos já?
Eu é que peço desculpa, respondi, mas não tenho muito boa memória para caras.
Não importa, disse ela com um sorriso nos lábios, pagas-me uma bebida e eu perdoo-te. Sou a Mara.
Foi aí que me apercebi o que me tinha chamado a atenção nela.
Os olhos dela eram penetrantes e profundos. Um olhar para eles e ficava-se perdido mesmo com uma sala inteira entre nós. E eu, que na primeira vez tinha ficado indiferente àquele mar que era o azul dos olhos dela, desta vez deixava-me levar e afogar na profundidade que eles possuíam.
Miguel, respondi passado um segundo que pareceu uma eternidade. E teria todo o gosto em pagar-te uma bebida, se estas se pagassem. Mas acompanho-te até ao bar com todo o prazer.

Sentados num sofá junto ao bar a festa deixou de existir.
Os convidados que circulavam pelo salão para serem vistos, os empregados que corriam de um lado para o outro com travessas com aperitivos, os barulhos da festa, tudo desapareceu à nossas volta até ficarmos só os dois.
O próprio salão da embaixada deu lugar aos sítios de que falávamos.
A viagem que ela tinha feito à Finlândia em Fevereiro, as duas noites que passou presa no aeroporto de Boston por causa de uma tempestade e que para ela tinha sido a pior experiencia de sempre. Falei-lhe do meu tempo como adido diplomático em Tel-Aviv, de quando em visita à Colombia por pouco não ia sendo capturado por um grupo de guerrilha não fosse a experiencia do nosso guia nessas situações.

Falamos de tudo o que as nossas vidas eram.
Livros que tínhamos gostado, filmes que tínhamos visto, concertos a que tínhamos ido.
Frequentávamos os mesmos sítios nas cidades em que já tínhamos estado os dois.
Tínhamos ido ao mesmo concerto há uns meses atrás em Berlim.
Chegamos à conclusão que tínhamos os mesmos gostos e que sim, seria possível já nos termos conhecido ou pelo menos encontrado.

À nossa volta a festa foi baixando de intensidade e as pessoas começaram a ir embora. Mas nós não nos demos conta.
O bar fechou e quando começaram a limpar a sala nós ainda estávamos no sofá a conversar.
As pessoas começaram a chegar para o pequeno almoço quando reparamos nas horas.
Tinha-me perdido nos olhos dela e não queria sair mais.
Saímos da embaixada e paramos à porta.

Até quando estás cá?, perguntou-me por fim.
Tenho voo para Haifa depois do almoço, disse.
É pena. Tenho mais dois dias aqui antes de voltar a Bruxelas., disse-me com um ar desiludido.
Podemos almoçar, se quiseres., disse-lhe.
Ela ficou pensativa por um momento.
Não posso, respondeu, tenho um almoço de negócios e não posso mesmo faltar.
Oh, suspirei.
Toma o meu cartão. Não podemos perder o contacto. Quem sabe não nos cruzaremos um dia destes..., disse ela.
Tirei-lhe o cartão da mão tocando-lhe suavemente na mão. Ela olhou para mim sorrindo e pondo-se na ponta dos pés encostou os lábios dela aos meus.
Até uma próxima vez.,disse enquanto virava costas.

Fiquei a olhar para ela enquanto descia a rua na direcção do hotel.
Tentei adiar a viagem mas assuntos importantes forçavam o meu regresso.
Passaram seis anos.

Fomos trocando mensagens, e-mails e postais dos sítios por onde passamos.
Encontramo-nos apenas três vezes depois desse dia e resultado é sempre o mesmo.
Ficamos presos nas histórias um do outro e as horas passam em minutos e depois chega o momento de regressar e, novamente, nos afastarmos.

Ainda assim sei que um dia nos vai ser possível ficar mais que umas horas juntos.
Até esse dia vou sonhar com ela e que me perco para sempre nela sem nunca ter que a abandonar.
E, acima de tudo, vou guardar na memória a calmaria e a emoção que é olhar para aquele mar azul que se esconde...
atrás dos seus olhos.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale (Afterword)

E assim acaba um ciclo.
Podemos dizer que acordamos de uma viagem pelas experiências de três indivíduos que se viram a acordar para a sua própria existência.

Ao escrever estas linhas para fechar o ciclo veio-me à cabeça uma conversa que tive com uma pessoa (peço desculpa por não me lembrar quem foi) que após ler alguns dos meus textos disse que todos começavam com um acordar. A conversa ficou por aí e nunca mais pensei nela. Até hoje.

Mais, hoje enquanto estava a reler um livro sobre um dos meus comics preferidos, veio-me à cabeça a primeira e ultima frase usadas no primeiro arco.
(quem me conhecer sabe que me refiro a Sandman do Neil Gaiman)
A história começa e acaba com a frase “Wake up.”, o que é apropriado visto tratar-se de uma história sobre sonhos. E não serão todas as histórias sonhos?

Acho que todos estes factores ficaram inconscientemente na minha cabeça até lhes dar uso.
E agora finalmente essas ideias estão cá fora.

Sim, é possível que muitas das minhas histórias comecem com alguém a acordar (lembro-me do acordar de Angelo Donovan na “Moon Burns”, que também, em parte, foi influenciado por uma história do Gaiman, e que um dia prometo continuar...) mas nenhuma delas é sobre o “acordar” em si.
Estas três são exactamente sobre isso.
Não sobre alguém que acorda mas sobre o que esse acordar lhe revela.
Sobre o significado desse acordar.
Sobre o efeito que esse acordar tem sobre a pessoa.
Seja um acordar para uma nova vida, o acordar duma personalidade reprimida ou o acordar de uma nova perspectiva.
Não deixa de ser um acordar.

À medida que as foi escrevendo as histórias foram-se tornando mais pessoais.
Cada uma representa um pouco mais de mim e da minha personalidade.
Também eu fui acordando à medida que as escrevia.
Espero que após lerem estas histórias algo tenha acordado dentro de vós como acordou em mim.
Espero encontrar-vos aqui brevemente.

Chegou o momento.
É agora.

São horas de acordar.

Awakenings, A Triptych Tale III

Abri os olhos.
Não queria acreditar.
Estava no Mundo.
Estava sentado num banco de jardim numa qualquer cidade que não tinha como reconhecer.
O Mundo.

Deixei a palavra passear pela minha mente como que para me habituar a ela.
Após tanto tempo cá estava eu novamente. Desta vez não por minha vontade.
Tinha sido expulso. Exilado. Por crimes contra o Pai.
Só defendi o que acreditava e por isso fui castigado.
Banido sem hipótese de retorno.
Para sempre marcado como o inimigo.

O mundo.
Como tinha mudado desde a última vez.
Tudo era diferente do que recordava.
As construções eram megalómanas. Torres ascendiam aos céus desafiando tudo.
Os veículos moviam-se a uma velocidade incrível e as pessoas...
As pessoas eram maravilhosas. Exemplos perfeitos da criação.
Senti uma vontade enorme de me misturar com elas. De as sentir perto de mim. De comunicar com elas.

De repente apercebi-me que não fazia ideia se me seria possível envolver neste mundo.
Será que sabia a linguagem deste sítio onde me encontrava, foi a primeira dúvida que cruzou a minha mente.
Decidi levantar-me.
Quando o fiz quase caí. O meu centro de gravidade tinha mudado. Só aí senti a falta delas.
Tinha-as perdido aquando a minha viagem para o Mundo.
Na minha primeira viagem tinha-as mantido mas então não tinha sido expulso. Era um mensageiro e elas faziam parte da minha função.

Após um momento para me habituar a equilibrar dirigi-me as pessoas que se movimentavam na rua.
Deixei-me ouvir.
Absorvi as vozes e as palavras tentando reconhecer o que até este dia seria para mim automático.
Foi então que reparei na mulher que olhava na minha direcção do outro lado da rua.
Olhava na minha direcção mas não para mim.
O seu olhar era vazio, perdido num horizonte que só ela conseguia ver.
O vento agitava o seu cabelo ruivo que o sol que rilhava por entre as nuvens fazia parecer a chama de um fogo.
Embora vazios os seus olhos verdes emitiam um brilho hipnotizante.
Por momentos perdi-me nela. Perfeita.

Pensei em mim.
Como seria eu agora?
Será que mantinha o mesmo aspecto?
Será que o cabelo loiro comprido se mantinha ou teria sido alterado para algo mais deste mundo? Seria a minha pele ainda demasiado branca que parecia irradiar uma luz própria?
Tentei encontrar um espelho mas não havia nenhum.

Olhei de novo mas ela já não se encontrava lá.
E foi então que me apercebi.
Reconheci-a aquele olhar.
Já o tinha visto no rosto de tantos outros que não sabia como me poderia ter passado.
A única justificação era a mudança que tinha ocorrido em mim.
Mas agora que sabia não a poderia deixar avançar.
Tinha que a encontrar.

Corri para o lado do passeio em que ela se encontrava sem prestar atenção aos carros que buzinavam na minha direcção nem aos gritos, que não percebia, das pessoas no passeio.
Olhei para todos os lados e por pouco não apanhava o seu cabelo no meio da multidão que dobrava uma esquina.
Mais uma vez corri na sua direcção desta vez apanhando-a a entrar num dos edifícios que se disponha a tocar o céu.
Entrei no edifício e não a vi.
Mas sabia para onde se dirigia.
E foi para lá que também fui.

Quando cheguei ao topo do edifício estava cansado.
Era a primeira vez que me sentia assim mas lá estava ela.
O vento era mais forte aqui e o cabelo ruivo voava em todas as direcções como um fogo indomável.
Novamente, por breves momentos, perdi-me nela enquanto ela estudava como subir para o parapeito.
Perfeita.
Ela voltou-se como se tivesse ouvido o meu pensamento.

E falou.
Não sei o que disse mas sabia serem palavras de dor. Palavras de perda.
Sabia que tudo o que ela tinha por querido e amava lhe tinha sido tirado.
Mesmo sem entender as palavras sabia que não havia nada neste mundo que lhe desse esperança.
Queria morrer e eu entendia-a.

Dirigi-me a ela e ela fez-me um sinal para parar.
Parei e estendi os braços com as mãos abertas, palmas para cima.
Ela entendeu-me e fez sinal para me aproximar.
Pousei as minhas mãos nos ombros dela e olhamos nos olhos um do outro.
Vi lágrimas a escorrem dos olhos dela e senti que o mesmo acontecia comigo.

Ajudei-a a subir e subi eu em seguida.
Durante minutos que pareceram uma eternidade olhamos para o mesmo horizonte que cada um via à sua maneira.
Olhei para ela procurando os seus olhos e vi que ela fazia o mesmo.
Já não estavam vazios. Algo tinha nascido neles.
Demos as mãos e saltamos.
Fechei os olhos.

Acordei, de pé como sempre, no centro meu quarto.
As paredes brancas e imaculadas magoavam-me os olhos.
O sonho, ou visão, tinham-me mudado.
Lembrava-me dela e de tudo o que me tinha dito.
Lembrava-me dos olhos dela.
Havia uma razão para o que iria fazer. Eles não o mereciam.
Não mereciam as injustiças e a dor que lhes eram impostas.
Foi o meu primeiro pensamento de rebelião.
A primeira faísca de revolta.

Dirigi-me a janela que se abria no meu quarto.
Olhei a cidade que se estendia á minha frente em tons de prata.
Sabia o que tinha que fazer.
Saltei.
Sentia-as de novo e embora a sensação fosse boa sabia que embora fosse sentir a sua falta me iria habituar.
E então abri-as.
As penas esmeralda que formavam as minhas asas reluziam sob a luz prateada.
E voei.
Voei falando com todos os meus pares do que tinha visto.
O que achava ser necessário.

Sei que o dia está a chegar.
O dia em que vou ser expulso e renegado.
O dia em que a luz prateada do Pai não me vai iluminar mais.
O dia em que voltarei ao mundo.
O dia em que a vou ver de novo.

O dia em que, talvez, nos encontremos nos olhos um do outro e a nossa história tenha um final diferente.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale II

Acordei como em tantos outros dias.
Desorientado.
Mais uma vez acordava num quarto que me era estranho. Mais uma vez não me lembrava da noite anterior.
Merda, como detestava aquelas brancas que me davam de vez em quando.

Tudo era igual a tantas manhas que as seguiam.
O quarto de motel rasca. A sensação de que algo errado se tinha passado. E aquela estranha sensação de vazio que rivalizava com uma satisfação macabra.
Isso e claro e a cama vazia.
Só aí me apercebi.
A cama não estava vazia. Havia alguém deitado ao meu lado. Perfeitamente quieto e silencioso.
Virei-me.

E então vi-a.
O cabelo ruivo e ondulado, a pele branca, os olhos azuis.
Era uma imagem de perfeição.
Mas havia algo que não se enquadrava. Algo que tornava aquela imagem angelical numa composição demoníaca.
Apercebi-me só então que os seus seios perfeitos não se moviam. Apercebi-me disso no mesmo momento em que os meus sentidos se aperceberam do sangue espalhados lençóis.
Levantei-me da cama e corri para a casa de banho.

Na casa de banho, debrucei-me no lavatório por uns momentos com os olhos fechados.
Só podia ser uma alucinação. Uma brincadeira. Sei lá. Mas real é que não é.
Não pode estar uma rapariga morta no meu quarto.
Merda, merda, merda.
Abri os olhos e olhei para o espelho.
Um arrepio percorreu-me o corpo e não tivesse acabado de vomitar teria sentido essa necessidade.
O meu corpo estava coberto por uma coisa castanha avermelhada seca.
Tinha sangue espalhado pelo meu corpo.
Abri a torneia do chuveiro com mãos que tremiam e atirei-me lá para dentro.

Fiquei debaixo da água pelo que me pareceu uma eternidade, esfregando o sangue seco do meu corpo com tanta força como podia.
A água tingia-se de vermelho e castanho.
Mas passado um bocado já corria límpida pelos meus pés e por momentos permiti-me esquecer o quadro diabólico que existia no quarto.

Finalmente ganhei coragem para sair da casa de banho e entrei novamente no quarto fazendo um esforço para não olhar para a cama.
Merda. O que posso fazer? Ligar à polícia? Seria considerado suspeito mais provável. Mas era a melhor solução.
Depois de vestir uns boxers dirigi-me à mesa onde estava o telefone e ia a pegar no auscultador quando um pensamento surgiu na minha cabeça.

Deixei-a para ti.
Merda. Para além de tudo o que estava a acontecer era o que me faltava.
Brancas na memória, uma mulher morta na cama onde eu dormia, não saber como tinha vindo aqui ter e agora vozes na minha cabeça. Era mesmo o que precisava. Merda.
E novamente.
Deixei-a para ti.
Desta vez deixei-a continuar.

Deixei-a para ti.
Ao tempo que vivemos os dois uma meia vida.
Nenhum dos dois está satisfeito com o que tem. E o pior é que tu nem da tua meia vida gostas.
Eu, pelo menos, quando estou a conduzir aprecio o que faço. Tu apenas vagueias pela vida sem saber o que queres.

EU SEI O QUE QUERO!
Olha para o quarto.
OLHA!
Vê-la deitada na cama?
Nunca a conseguirias ter se não fosse eu.
EU!
Tu és uma desculpa.
ESTOU FARTTO DE DESCULPAS!

O quê?
Não consegues aguentar o facto de saber que fizeste aquilo à pobre coitada?
Ela até gostou. No Inicio.
Mas não te preocupes. Não foste TU fui EU.
Fui sempre eu. As brancas, as falhas de memória.
TUDO EU!
Também não consegues viver com isso?
Fazemos assim. Tenho uma proposta para ti.
Que dizes a...


Levantei-me do banco onde me sentava e dirigi-me ao quarto.
Olhei para a cama e sorri.
Vesti-me calmamente sem nunca tirar os olhos do corpo que ainda conseguia ser mais perfeito em morte que em vida.
Saí do quarto e cumprimentei o responsável do motel enquanto me sentava numa mesa manchada e pedia um café e uma torrada.
Bacon e ovos? Sim, porque não. Um sumo de laranja também, já agora.

Porque não?
Depois de tanto tempo a viver os minutos que me eram dados como esmolas agora tinha todo o tempo do mundo.
Podia ter tudo o que quisesse e o que queria era tudo.
Como era bom estar finalmente acordado.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale I

Acordei.
Aliás senti o meu corpo aperceber-se do que o rodeava, por isso, sim, posso dizer que acordei.
Não abri os meus olhos imediatamente.
Havia algo que me dizia para me manter naquele estado entre o sono e o acordar. Para me manter naquele limbo em que a realidade do sonho e a irrealidade do mundo se une e não se sabe onde começa uma e acaba outra.
Mas, ainda assim, os meus olhos abriram-se.

Olhei à minha volta e tornei a fecha-los. Mantive-me com eles fechados durante um momento, e forcei-me a acordar.
Voltei a abri-los.
O meu primeiro pensamento, quando abri os olhos a primeira vez, é que este era daqueles sonhos em que se pensa acordar e nos deparámos com uma realidade terrível, não que não o seja mas isso faz parte de outra história.
Quando abri os olhos pela segunda vez, o que eu esperava ser o verdadeiro acordar, a imagem mantinha-se imutável.

Encontrava-me numa rua aparentemente deserta. Como teria ido ali parar? Sonambulismo? Era uma explicação mesmo nunca tendo sofrido disso antes.
Mas o que mais me deixava apreensivo era a cor da cidade.
Para onde quer que olhasse era de um cinzento esbranquiçado, tudo parecia envolvido por um nevoeiro, uma névoa cinzenta que envolvia tudo e dava um ar fantasmagórico a tudo o que tocava. Parecia que estava num mundo onde apenas existiam sombras do mundo real, um mundo em tons de cinzento.
Um mundo cinzento e silencioso.
Ao aproximar-me de um edifício reparei que as formas cinzentas se sobrepunham a formas com cores esbatidas e comecei-me, também, a aperceber-me da existência de outras pessoas à minha volta.
O mundo parecia ter despertado enquanto me dirigia ao edifício.

Mas em vez de a presença de mais pessoas me deixar mais calmo ainda agravou o meu receio.
A maioria das pessoas à minha volta tinha aquele tom esbatido que tinha reparado nos edifícios, mas também via pessoas, ou formas de pessoas que pareciam feitas de névoa. Eram essas pessoas 'cinzentas' que me faziam sentir atemorizado.
Mergulhei no mar de pessoas 'reais' e afastei-me o mais possível dos vultos cinzentos.
O que seriam aquelas formas? O que se estaria a passar comigo?
Só poderia ser um sonho, que mais poderia ser, mas algo em mim sabia que era real.
Eram estas as questões que tinha na cabeça quando a vi.

O cabelo comprido e liso, a cara perfeita, um olhos que cintilavam. Mesmo naquele mundo cinzento possuía uma beleza extraordinária. Como que se uma aura pura e límpida e acima de tudo bela fosse projectada nela vinda de um outro mundo.
Preparava-se para atravessar a rua.
Foi então que o vi.
Quando pôs o pé na rua para passar, deve ter-se distraído por momentos e não reparou no camião que fazia a curva e se dirigia na sua direcção.
Sem pensar avancei na direcção dela.

Nesse momento os meus sentidos sofreram um choque incrível e o mundo explodiu, transformando-se numa miríade de som e cor.
As minhas mãos tocaram-lhe empurrando-a para longe do alcance do camião, que continuou o caminho indiferente à mulher de cabelo ruivo caída no chão e ao homem, eu, que do meio da rua protestava na sua direcção.

Toda a gente se reuniu a sua volta questionando-se o que teria acontecido e a sorte que tinha tido e o que poderia ter acontecido.
A mulher olhava a toda a volta, questionando todos com os seus olhos verdes, tentando descobrir o seu salvador mas só se deparava com olhares vazios ou que procuravam o mesmo. Ninguém sabia quem tinha sido. Ninguém o tinha visto e, ainda assim, ali estava eu.

E foi então, quando o mundo começou a esbater-se novamente à minha volta, que reparei no meu reflexo.
Era uma mancha cinzenta envolvida pelo um mundo de cor. Era um fantasma dividido entre dois mundos, um colorido de cinzento mortiço e de cores vivas

Havia, agora, voltado de novo ao meu novo mundo.
Conseguia agora ver nos vultos cinzentos, outros como eu, expressões e sentimentos. Vi que me viam como um deles assim como eu a via como meus semelhantes.
Alguns andavam, outros flutuavam, uns sozinhos e outros acompanhando formas que às quais a névoa do nosso mundo tirava a cor.
E foi aí que me decidi.
Dirigi-me até à mulher caída, que sabia agora ser ruiva e com olhos verdes algo que a névoa nunca me permitiria descobrir.
E quando ela se levantou e seguiu caminho eu segui-a.

Ainda hoje o faço.
Mas um dia chegará em que terei de a abandonar. Ela partirá e eu terei uma eternidade para percorrer os meus dois mundos. Ou talvez seja liberto desta condição quando chegar esse momento e também a mim seja possível partir.

Ou talvez...
Talvez ela passe também para este mundo. E talvez aí este mundo fique um pouco mais colorido.

E talvez...

Talvez ela se lembre de mim.

Awakenings, A Triptych Tale (Introdução)

Tudo começou numa madrugada em que acordei de repente com uma serie de ideias na cabeça.
Ao acordar a primeira coisa que me veio à cabeça foi o número '3'. Dizem que é um número mágico, um número com poder. Mas o que me prendeu a atenção foi a maneira como apareceu. Não a palavra, não a ideia mas o número em si. A sua forma flutuava na minha mente e a primeira coisa que fiz quando abri os olhos foi escrever numa folha de papel:

3

O número era importante, sempre foi.
Santíssima Trindade, Três Reis Magos (tão a perceber onde quero chegar)... e três historias.
(este numero iria servir não só para esta ideia mas para um outro projecto)

Sabia que teria de haver algo comum entre elas, algo que as unisse ou não faria sentido que fossem um conjunto e publicadas juntas (não que não funcionem em separado, funcionam).
O tema neste momento só podia ser um. Tinha acordado para escrever aquelas ideias e isso pareceu-me ser mais que tema adequado.
Debaixo do '3' escrevi:

Acordar

Sabia também sobre o que seriam duas das histórias. Estavam as duas praticamente escritas na minha cabeça.
Uma seria sobre uma pequena obsessão minha e outra sobre um tema que tinha nos últimos dias andado na minha cabeça (não vou revelar qual é qual mas são ambas a minha primeira incursão no tema).
Para a que faltava optei por um tema em que, acho, estou mais à vontade. É também a única que tem um duplo acordar.

Apontei também isso no papel e apagando a luz virei-me para o outro lado.
Era só uma questão de tempo até acordar.

Vou fazer por publicar as três histórias o mais brevemente possível e com o menor intervalo entre elas.

Espero que gostem tanto de as ler como eu gostei de as escrever.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Circulo Invisível

O primeiro de 2010. Esperemos que seja o primeiro de muitos. Este Ano vou tentar concluir projectos que ja foram iniciados no que parece ter sido outra vida. Esperemos que as coisas corram nesse sentido.
O texto que se segue é, na minha opinão, a história mais forte e pesada que já escrevi. A ideia veio quando ouvia um album dos After Forever intitulado 'Invisible Circles' de onde tirei também o nome da história.


“É demais”, pensou a criança enquanto olhava para o tecto, “É demais. Não aguento mais”.
Estava deitada na cama desde que tinha subido para o quarto num ataque de fúria após mais uma discussão com o pai. As lágrimas, que derramava sempre nestas ocasiões, já tinham secado. Não eram lágrimas de tristeza mas lágrimas de fúria e de frustração. Não havia nada que pudesse fazer para sair desta situação e era isso que a deixava furiosa e frustrada. Era por isso que chorava.
A discussão tinha começado como tantas outras. O Pai, também ele frustrado, por razões que nada tinham a ver com a filha, tinha mais uma vez decidido culpa-la por o que quer que fosse que o irritava hoje. A Mãe com quem anteriormente se passavam todas as discussões, normalmente à volta do tópico desta ter tido que abandonar o emprego devido a uma “catraia incomodativa e irritante”, nas palavras da própria mãe, não se manifestava. Desde que tinha encontrado a Salvação em calmantes e álcool que não se manifestava em nada que dissesse respeito à sua querida filha, nem mesmo quando o pai elevava as discussões para o nível físico.
“Ao menos desta vez não me tentou bater”, pensou a criança enquanto contemplava o tecto que mostrava os desenhos esbatidos de um quarto de bebé cujos pais pensavam ser a salvação para um casamento. Os desenhos transportam-na para o passado e para a sua curta infância.

Tinha dois anos. A sua primeira memória. A mãe estava a falar com alguém. Não sabe o que diz mas sabe que há tristeza na voz da mãe. A conversa parou e a mãe vem ao quarto. A bébé sorri ao ver a mãe. A mãe olha para a bébé e debruça-se no berço. “Vai pegar em mim!”, pensa a bébé. Mas a mãe dá-lhe um estalo e vira as costas deixando a bébé a chorar e a pensar “O que é que eu fiz Mamã?”

Os anos passam e a bébé tem agora cinco anos. De uma maneira sabe que a mãe a culpa por ter tido que deixar o emprego, por ter que deixar a sua vida. Sabe-o pela maneira como a mãe a trata. Como se fosse um elemento indesejado numa vida indesejada. Os pais discutem um com o outro e com ela. Quando param de atribuir culpas um ao outro passam a atribuí-las a ela. Ou então decidem na discussão que é ela a culpada do rumo que a vida delas tomou. Ela promete-lhes que vai ser boa menina. Que se vai portar bem e que vai ficar em silêncio. Que não os vai perturbar ou incomodar mais. Que só quer que eles gostem dela. A resposta é sempre a mesma. Que sabe ela de gostar de alguém? Que devia ter sido uma salvação para eles e que em vez disso os afundou mais.

Tem nove anos. O pai chega a casa. Vê a mãe a dormir no sofá sob o efeito de calmantes uma garrafa de vodka meio vazia tombada no chão. Sentada na cozinha a fazer os trabalhos da escola sente a fúria crescer dentro dele, mas, ainda assim, dirige-se a ele e mesmo antes de dizer seja o que for sente as costas da mão dele no rosto. O impacto é tão forte que a manda contra a parede. Foi a primeira vez. Foi a menos de um ano.

De volta ao presente.
A criança vira-se na cama e fecha os olhos com força para tentar fugir às imagens que passam na sua cabeça. “Tenta dormir e ter sonhos bons”, pensa, “Foge para um mundo só teu.”

Mas as imagens que se formam na sua cabeça não são o escape que procura.
Não, em vez de se ver num mundo de princesas e unicórnios e fadas vê-se num mundo que tem tanto de diferente como de igual.

Vê uma criança caída contra uma parede. De início pensa que é ela mas logo se apercebe do seu erro. A criança que ela era é agora mãe. A criança para que olha é sua filha. O olhar que lança a criança é um olhar cheio de fúria. O seu olhar. Sente que perdeu o controlo da sua vida e que a culpa é daquela criança. Daquele ser indesejado. Sente o que a sua mãe sentiu em relação a ela. Sente a frustração do seu próprio pai. E, enquanto a sua mão desce novamente em direcção a criança que é sua filha, sente a cruel satisfação que os seus pais sentem quando a castigam. Sente-se a pensar “Destruíste a minha vida e eu destruo a tua!”.

É este pensamento que a desperta.
O sonho deixou-a a tremer. Mas, no fundo, finalmente a criança sabe o que tem a fazer.
Os pais já dormem por isso ela desce sem problemas á garagem. Pega numa lata de gasolina que o pai guarda sempre para uma emergência. Ao subir passa pela cozinha e abre o gás do fogão. Começa a espalhar a gasolina aos poucos pela casa e com cuidado abre a porta dos quartos dos pais e põe a lata por baixo da cama. Depois dirige-se ao seu próprio quarto e tomando os calmantes da mãe deixa-se cair na cama. Acende um fósforo e deixa-o cair na poça de gasolina que tem ao lado da cama.
O seu último pensamento é para a filha que teria daí a muitos anos.
“Salvei-te minha querida.”