Acordei.
Aliás senti o meu corpo aperceber-se do que o rodeava, por isso, sim, posso dizer que acordei.
Não abri os meus olhos imediatamente.
Havia algo que me dizia para me manter naquele estado entre o sono e o acordar. Para me manter naquele limbo em que a realidade do sonho e a irrealidade do mundo se une e não se sabe onde começa uma e acaba outra.
Mas, ainda assim, os meus olhos abriram-se.
Olhei à minha volta e tornei a fecha-los. Mantive-me com eles fechados durante um momento, e forcei-me a acordar.
Voltei a abri-los.
O meu primeiro pensamento, quando abri os olhos a primeira vez, é que este era daqueles sonhos em que se pensa acordar e nos deparámos com uma realidade terrível, não que não o seja mas isso faz parte de outra história.
Quando abri os olhos pela segunda vez, o que eu esperava ser o verdadeiro acordar, a imagem mantinha-se imutável.
Encontrava-me numa rua aparentemente deserta. Como teria ido ali parar? Sonambulismo? Era uma explicação mesmo nunca tendo sofrido disso antes.
Mas o que mais me deixava apreensivo era a cor da cidade.
Para onde quer que olhasse era de um cinzento esbranquiçado, tudo parecia envolvido por um nevoeiro, uma névoa cinzenta que envolvia tudo e dava um ar fantasmagórico a tudo o que tocava. Parecia que estava num mundo onde apenas existiam sombras do mundo real, um mundo em tons de cinzento.
Um mundo cinzento e silencioso.
Ao aproximar-me de um edifício reparei que as formas cinzentas se sobrepunham a formas com cores esbatidas e comecei-me, também, a aperceber-me da existência de outras pessoas à minha volta.
O mundo parecia ter despertado enquanto me dirigia ao edifício.
Mas em vez de a presença de mais pessoas me deixar mais calmo ainda agravou o meu receio.
A maioria das pessoas à minha volta tinha aquele tom esbatido que tinha reparado nos edifícios, mas também via pessoas, ou formas de pessoas que pareciam feitas de névoa. Eram essas pessoas 'cinzentas' que me faziam sentir atemorizado.
Mergulhei no mar de pessoas 'reais' e afastei-me o mais possível dos vultos cinzentos.
O que seriam aquelas formas? O que se estaria a passar comigo?
Só poderia ser um sonho, que mais poderia ser, mas algo em mim sabia que era real.
Eram estas as questões que tinha na cabeça quando a vi.
O cabelo comprido e liso, a cara perfeita, um olhos que cintilavam. Mesmo naquele mundo cinzento possuía uma beleza extraordinária. Como que se uma aura pura e límpida e acima de tudo bela fosse projectada nela vinda de um outro mundo.
Preparava-se para atravessar a rua.
Foi então que o vi.
Quando pôs o pé na rua para passar, deve ter-se distraído por momentos e não reparou no camião que fazia a curva e se dirigia na sua direcção.
Sem pensar avancei na direcção dela.
Nesse momento os meus sentidos sofreram um choque incrível e o mundo explodiu, transformando-se numa miríade de som e cor.
As minhas mãos tocaram-lhe empurrando-a para longe do alcance do camião, que continuou o caminho indiferente à mulher de cabelo ruivo caída no chão e ao homem, eu, que do meio da rua protestava na sua direcção.
Toda a gente se reuniu a sua volta questionando-se o que teria acontecido e a sorte que tinha tido e o que poderia ter acontecido.
A mulher olhava a toda a volta, questionando todos com os seus olhos verdes, tentando descobrir o seu salvador mas só se deparava com olhares vazios ou que procuravam o mesmo. Ninguém sabia quem tinha sido. Ninguém o tinha visto e, ainda assim, ali estava eu.
E foi então, quando o mundo começou a esbater-se novamente à minha volta, que reparei no meu reflexo.
Era uma mancha cinzenta envolvida pelo um mundo de cor. Era um fantasma dividido entre dois mundos, um colorido de cinzento mortiço e de cores vivas
Havia, agora, voltado de novo ao meu novo mundo.
Conseguia agora ver nos vultos cinzentos, outros como eu, expressões e sentimentos. Vi que me viam como um deles assim como eu a via como meus semelhantes.
Alguns andavam, outros flutuavam, uns sozinhos e outros acompanhando formas que às quais a névoa do nosso mundo tirava a cor.
E foi aí que me decidi.
Dirigi-me até à mulher caída, que sabia agora ser ruiva e com olhos verdes algo que a névoa nunca me permitiria descobrir.
E quando ela se levantou e seguiu caminho eu segui-a.
Ainda hoje o faço.
Mas um dia chegará em que terei de a abandonar. Ela partirá e eu terei uma eternidade para percorrer os meus dois mundos. Ou talvez seja liberto desta condição quando chegar esse momento e também a mim seja possível partir.
Ou talvez...
Talvez ela passe também para este mundo. E talvez aí este mundo fique um pouco mais colorido.
E talvez...
Talvez ela se lembre de mim.
1 comentário:
Adoro esse limbo entre o sonho e a realidade inicial. E ai essas tuas musas… Gosto mesmo muito da maneira como se consegue acompanhar a personagem que criaste e “ver” o cenário todo através dos olhos dele.
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