Sentava-se de pernas cruzadas no meio do duplo circulo desenhado no chão a tinta vermelha como que adormecido. Estava descalço. Vestia umas calças de ganga pretas e o seu peito encontrava-se nu e tinha desenhado um estranho símbolo.
Entre os dois círculos estavam inscritas runas e símbolos cabalísticos copiados com uma precisão milimétrica que havia retirado de um livro que tinha encontrado dias antes no escritório do seu pai onde nunca tinha entrado até àquela altura.
Tinha lido o Livro, com imensa atenção nos últimos dias, uma e outra vez até quase o saber de cor e seguido todos os passos que vinham nele descritos. Tinha, na hora que antecedeu a sua descida para a garrafeira, preparado e bebido a poção que vinha descrita na preparação para o ritual e, depois de desenhado o círculo e as runas, entoado as palavras cerimoniais de invocação.
Invocação de quê não sabia, apenas sabia que o Livro prometia que valia a pena e que a vida dele nunca mais seria a mesma.
*
João tem 15 anos. É um jovem introvertido sempre agarrado a livros que lê sempre que tem oportunidade. Não é mau aluno. Pelo contrário tem excelentes notas em tudo o que não diga respeito a desporto, o que faz com que, juntamente com a obsessão por livros, seja gozado pelos outros rapazes. Não tem grande dificuldade em falar com raparigas embora também não possua grandes facilidades.
Tinha acabado de ser gozado por um rapaz um ano mais velho enquanto falava com uma rapariga, por quem nutria uma paixão secreta, e que se riu do comentário que o outro rapaz fez quando o director o chamou pelo comunicador.
- O seu pai morreu, João. – disse o director quando João ainda nem tinha fechado a porta do gabinete, fazendo com que este estacasse à entrada. – Está dispensado das aulas por hoje. Mandaremos alguém acompanha-lo a casa.
Virou-se sem responder e dirigiu-se à entrada da escola onde um táxi o esperava.
Quando chegou a casa a tia esperava-o na entrada. Tentou abraça-lo mas ele dirigiu-se para o quarto e deitou-se na cama a chorar.
Mais tarde levantou-se e desceu as escadas em direcção à sala onde família e amigos do pai se encontravam e cumprimentando-os agradeceu os pêsames que lhe iam dando.
O dia que se seguiu, o dia do funeral, foi um borrão de imagens indistintas, de tudo o que aconteceu nesse dia a única que se lembra é, já em casa, de ver a tia sentada em frente à lareira e o chamar.
- João – disse numa voz calma – senta-te um bocadinho a fazer-me companhia.
João sentou-se na cadeira oposta à da tia com a mesa de apoio entre eles.
- Agora é tudo teu. – disse-lhe a tia. – É tudo teu e vais ter de aprender a lidar com isso. Com tudo o que isso acarreta. – apontou para uma caixa em cima da mesa – A chave do escritório do teu pai. Agora é teu. Todos os livros, todos os papéis, todos os segredos, toda a nossa família. É tudo teu. Esta chave, as portas que abre e a sala para a qual as portas abrem são a maior herança desta família. Desde que a nossa família chegou a esta terra à mais de 700 anos que a chave é passada para o filho mais velho após a morte do seu portador. Devia ser o teu tio Carlos a passar-te a chave mas, infelizmente, a morte chegou-lhe antes deste momento e a função coube-me a mim. Há coisas que deves saber. Umas aprenderas através dos livros e papéis que encontrares. Outras descobrirás por ti. A maior parte vai-te ser dita por outros que encontrarás mas duas tens que saber agora. Nenhum dos livros pode sair daquelas portas, nunca. A segunda é que, agora, só tu podes lá entrar, mais ninguém poderá nunca cruzar aquelas portas enquanto fores vivo. Agora vai. Pega na caixa. Amanha falaremos mais. Talvez.
- Boa noite tia. – disse. Mas os olhos dela encontravam-se presos nas chamas da lareira e não lhe respondeu.
Subiu ao quarto e pousou a caixa na mesa de cabeceira. Deitou-se na cama e adormeceu a olhar para ela.
Acordou de manha e apercebeu-se que a casa estava demasiado silenciosa. Bateu à porta do quarto de hospedes onde a tia ia ficar e quando não obteve resposta abriu-a. O quarto estava vazio. A cama mostrava o colchão sem lençóis. Ninguém tinha dormido aqui esta noite.
“Adormeceu na sala”, pensou João. Descendo as escadas viu as cinzas frias na lareira mas não havia sinal da tia.
Procurou a governanta e como também não a descobriu dirigiu-se à cozinha e preparou o pequeno almoço. Enquanto tomava o café com leite pensou no que faria. Decidiu ir à escola entregar a justificação que o permitia ficar em casa mais 5 dias apenas como desculpa para sair de casa.
Quando chegou à escola reparou que todos os olhos se viravam para ele. Ouvia comentários serem sussurrados à sua passagem. Entregou a justificação no gabinete do director e ainda pensou ficar mas não conseguia aguentar os olhares por isso voltou para casa.
Ainda não havia sinal da tia quando voltou.
Subiu as escadas em direcção ao quarto para ir buscar o livro que estava a ler mas algo o fez parar em frente ao escritório do pai. As portas em madeira negra com veios avermelhados que outrora o assustaram eram-lhe agora chamativas. Pôs a mão no puxador pela primeira vez em 15 anos e sentiu um arrepio eléctrico pelo braço. Afastou-se da porta e dirigiu-se ao quarto. Nem um minuto tinha passado e João olhava de novo aquelas portas desta vez com uma chave negra como as portas na mão.
Introduziu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um breve clique. Tirou a chave e guardou-a no bolso das calças. Rodou o puxador e abriu as duas portas .
O escritório parecia um lugar fora do tempo. Várias cadeiras forradas a veludo encontravam-se espalhadas pela sala. De um dos lados um sofá de couro preto. Uma secretária digna de um rei ou presidente encontra-se à frente de uma janela com vista para um cenário que não existia, unicórnios, ninfas e faunos estavam representados nos painéis que cobriam as janelas ao fundo um rio corria. Sobre a secretária estava suspenso um candeeiro antigo, provavelmente com mais de dois séculos. Obviamente os anteriores donos do escritório tinham-no decorado ao seu gosto e os seguintes ocupantes tinham decidido não tirar nada, apenas acrescentando o que lhes pudesse fazer falta . O que mais lhe chamou a atenção foram as estantes com livros que se encontravam ao fundo. Livros cujos títulos lhe pareciam estranhos. Duvidava até que conseguisse ler alguns deles, visto serem escritos em línguas que desconhecia. Havia livros de mitologia, codex mágicos, livros de história e ensaios políticos. Numa das estantes descobriu o que seria uma serie de diários. O seu pai tinha o nome na lombada de quatro desse volumes. Pegou no primeiro quando outro livro lhe chamou a atenção. Na lombada castanha tinha escrito:
“João Pereira e Alves”
E por baixo:.
“Tomo I”
Pegou, também, no livro com o seu nome e abriu-o.
Na folha de rosto do volume dizia:
“Para ti meu Filho,
Que te acompanhe na morte,
Como nunca o fiz em vida”
António Pereira e Costa
João dirigiu-se à secretária levando os diários consigo. Quando lá chegou sentou-se na cadeira do pai, talvez de um antepassado mais remoto, ainda com os diários nos braços. Olhou para a secretária. Um pequeno candeeiro, um cinzeiro, um cachimbo com sinais de não ser usado há anos. E um livro. Provavelmente o pai tinha estado a lê-lo antes de ter o ataque cardíaco que o tinha matado. Pousou os diários em cima de um monte de papeis e ficou a olhar para o livro.
Tinha uma capa de couro claro já gasta quebrada por traços azulados como as veias de um braço. Só de olhar para ele via-se que era um livro antigo.
Fez um esforço para não olhar para ele e pegou no seu diário para se distrair do livro.
Abriu-o e leu novamente a dedicatória do pai. Virou as páginas até encontrar a primeira pagina onde pudesse escrever. Pegou numa caneta do porta-canetas do pai e no topo da mesma escreveu a data:
Dez de Março de 19 –
Uma linha abaixo escreveu:
O meu pai morreu há dois dias.
João fica a olhar para a página. Não tem mais nada que escrever por isso fecha o diário. Os olhos voltam a encontrar o livro. Rapidamente pega no primeiro volume do diário do pai e abre-o na primeira página escrita.
O que lê deixa-o perturbado. A data é a mesma mas quarenta anos antes. E a frase igual.
O meu pai morreu há dois dias.
Só que a entrada do pai continua,
Acordei e a casa estava vazia.
Sem mais que fazer senti-me atraído pelo escritório, onde nunca antes tinha entrado.
Um livro esta pousado à minha frente na secretária. Sinto-o a puxar-me de volta a ele sempre que desvio o olhar.
Fechou o diário. O pai tinha passado o mesmo neste dia há quarenta anos. Olhou o livro mais uma vez, levantou-se, apressadamente, e dirigiu-se para a porta. Agarrou o puxador mas antes de o conseguir rodar, estava novamente a olhar para o livro. Sem se aperceber estava de novo sentado na secretaria. Tocou o livro e um arrepio subiu-lhe pela espinha, como que se tivesse sido percorrido por uma corrente eléctrica. Estava assustado mas ainda assim abriu o livro...
*
A última fase do ritual era a pior. Pegou no punhal que tinha trazido do escritório e dizendo novamente o encantamento fez um golpe no braço. A sua voz tremeu mas não vacilou na recitação. Tinha tudo que ser exacto.
Após terminar o encantamento, esperou conforme dizia no livro, por duas horas. Horas essas em que permaneceu em silêncio e de olhos fechados na velha garrafeira que existia por baixo da casa.
Abriu os olhos e viu que nada tinha mudado. Não tinha aparecido nenhum demónio a oferecer-lhe o que quer que fosse em troca da sua alma nem um ser angélico a oferecer-lhe Salvação. Não se sentia diferente em nada.
Levantou-se e sacudindo o pó das calças subiu as escadas que davam acesso à casa.
Estava a ir para o quarto para descansar quando parou à porta do escritório. Queria continuar mas algo o forçava a entrar.
Abriu a porta com a chave que trazia sempre consigo no bolso e entrou.
A cadeira da secretaria estava virada para o quadro, agora uma janela para um outro mundo, onde as ninfas, com risinhos abafados, fugiam dos faunos por entre as árvores e o rio sussurrava por entre as ervas e pedras do seu leito.
Sentiu um cheiro a tabaco no ar que antes não tinha sentido.
A porta fechou-se atrás dele, sozinha, e João voltou o olhar na sua direcção.
Um súbito ranger vindo da secretaria sobressaltou-o.
Virou-se a medo.
“Está alguém aí” disse. Quando tinha descido para a garrafeira estava sozinho em casa, como tinha sido habitual nos últimos dias, mas alguém podia ter chegado entretanto. “Se bem que eu tenho a única chave” pensou.
A cadeira girou e o que viu fê-lo soltar um grito abafado.
“Olá João”, disse quem estava sentado na cadeira, “Não tenhas medo. Não te vou fazer mal.”
“Tu... Tu morreste!” gritou, “Foste enterrado à pouco mais de uma semana! É um sonho, só pode ser um sonho”.
O pai, meio etéreo olhou para ele com um olhar resignado. Por trás dele as ninfas e faunos deixavam as suas correrias e chegavam-se à borda do quadro para melhor ver o espectáculo
“Não meu filho, não é um sonho. Mas tens razão. Morri, fui enterrado e tu fizeste o ritual, como eu o fiz antes de ti quando o meu pai morreu. Mas senta-te, há coisas que precisas saber.”
João aproximou-se de uma das cadeiras e ia sentar-se quando o pai o parou.
“Não João, nessa não. Sim pode ser nessa. A partir do momento em que morri a maldição da nossa família passou para ti. O ritual que fizeste serve apenas para tirares o máximo de proveito dela. Como deves ter notado podes ver-me. Isso é resultado do ritual. Sou a personificação espiritual do homem que era, um fantasma se quiseres. Mas o poder que temos é limitado e estamos confinados a esta sala.”
“Podes também” continuou, “sentir outros seres como eu mesmo que eles não se façam mostrar. Também a magia que ainda resta neste mundo abriu as suas portas para ti. O quê? Sim como no quadro. Todos os homens da nossa família, quer dizer, não todos mas os filhos mais velhos fizeram o ritual após os seus pais morrerem e tiveram os seus conselhos durante a vida até morrerem. Essa é a maldição. Após a morte do pai o filho mais velho só vive por quarenta anos, quer faça ao não o ritual o seu destino passado esse tempo é o mesmo. Com o tempo aprenderás o resto”
Parou e durante minutos ficaram um a olhar para o outro.
Pai e filho. Mestre e discípulo.
Ao fim de longos minutos João engoliu em seco.
“Então somos os dois?” disse.
“Não meu filho. Não somos só os dois.”,
À sua volta João via sombras a tomarem formas, enquanto os seus antepassados se revelavam aos seus novos sentidos.
“Está na hora de conheceres a tua família.”
Entre os dois círculos estavam inscritas runas e símbolos cabalísticos copiados com uma precisão milimétrica que havia retirado de um livro que tinha encontrado dias antes no escritório do seu pai onde nunca tinha entrado até àquela altura.
Tinha lido o Livro, com imensa atenção nos últimos dias, uma e outra vez até quase o saber de cor e seguido todos os passos que vinham nele descritos. Tinha, na hora que antecedeu a sua descida para a garrafeira, preparado e bebido a poção que vinha descrita na preparação para o ritual e, depois de desenhado o círculo e as runas, entoado as palavras cerimoniais de invocação.
Invocação de quê não sabia, apenas sabia que o Livro prometia que valia a pena e que a vida dele nunca mais seria a mesma.
*
João tem 15 anos. É um jovem introvertido sempre agarrado a livros que lê sempre que tem oportunidade. Não é mau aluno. Pelo contrário tem excelentes notas em tudo o que não diga respeito a desporto, o que faz com que, juntamente com a obsessão por livros, seja gozado pelos outros rapazes. Não tem grande dificuldade em falar com raparigas embora também não possua grandes facilidades.
Tinha acabado de ser gozado por um rapaz um ano mais velho enquanto falava com uma rapariga, por quem nutria uma paixão secreta, e que se riu do comentário que o outro rapaz fez quando o director o chamou pelo comunicador.
- O seu pai morreu, João. – disse o director quando João ainda nem tinha fechado a porta do gabinete, fazendo com que este estacasse à entrada. – Está dispensado das aulas por hoje. Mandaremos alguém acompanha-lo a casa.
Virou-se sem responder e dirigiu-se à entrada da escola onde um táxi o esperava.
Quando chegou a casa a tia esperava-o na entrada. Tentou abraça-lo mas ele dirigiu-se para o quarto e deitou-se na cama a chorar.
Mais tarde levantou-se e desceu as escadas em direcção à sala onde família e amigos do pai se encontravam e cumprimentando-os agradeceu os pêsames que lhe iam dando.
O dia que se seguiu, o dia do funeral, foi um borrão de imagens indistintas, de tudo o que aconteceu nesse dia a única que se lembra é, já em casa, de ver a tia sentada em frente à lareira e o chamar.
- João – disse numa voz calma – senta-te um bocadinho a fazer-me companhia.
João sentou-se na cadeira oposta à da tia com a mesa de apoio entre eles.
- Agora é tudo teu. – disse-lhe a tia. – É tudo teu e vais ter de aprender a lidar com isso. Com tudo o que isso acarreta. – apontou para uma caixa em cima da mesa – A chave do escritório do teu pai. Agora é teu. Todos os livros, todos os papéis, todos os segredos, toda a nossa família. É tudo teu. Esta chave, as portas que abre e a sala para a qual as portas abrem são a maior herança desta família. Desde que a nossa família chegou a esta terra à mais de 700 anos que a chave é passada para o filho mais velho após a morte do seu portador. Devia ser o teu tio Carlos a passar-te a chave mas, infelizmente, a morte chegou-lhe antes deste momento e a função coube-me a mim. Há coisas que deves saber. Umas aprenderas através dos livros e papéis que encontrares. Outras descobrirás por ti. A maior parte vai-te ser dita por outros que encontrarás mas duas tens que saber agora. Nenhum dos livros pode sair daquelas portas, nunca. A segunda é que, agora, só tu podes lá entrar, mais ninguém poderá nunca cruzar aquelas portas enquanto fores vivo. Agora vai. Pega na caixa. Amanha falaremos mais. Talvez.
- Boa noite tia. – disse. Mas os olhos dela encontravam-se presos nas chamas da lareira e não lhe respondeu.
Subiu ao quarto e pousou a caixa na mesa de cabeceira. Deitou-se na cama e adormeceu a olhar para ela.
Acordou de manha e apercebeu-se que a casa estava demasiado silenciosa. Bateu à porta do quarto de hospedes onde a tia ia ficar e quando não obteve resposta abriu-a. O quarto estava vazio. A cama mostrava o colchão sem lençóis. Ninguém tinha dormido aqui esta noite.
“Adormeceu na sala”, pensou João. Descendo as escadas viu as cinzas frias na lareira mas não havia sinal da tia.
Procurou a governanta e como também não a descobriu dirigiu-se à cozinha e preparou o pequeno almoço. Enquanto tomava o café com leite pensou no que faria. Decidiu ir à escola entregar a justificação que o permitia ficar em casa mais 5 dias apenas como desculpa para sair de casa.
Quando chegou à escola reparou que todos os olhos se viravam para ele. Ouvia comentários serem sussurrados à sua passagem. Entregou a justificação no gabinete do director e ainda pensou ficar mas não conseguia aguentar os olhares por isso voltou para casa.
Ainda não havia sinal da tia quando voltou.
Subiu as escadas em direcção ao quarto para ir buscar o livro que estava a ler mas algo o fez parar em frente ao escritório do pai. As portas em madeira negra com veios avermelhados que outrora o assustaram eram-lhe agora chamativas. Pôs a mão no puxador pela primeira vez em 15 anos e sentiu um arrepio eléctrico pelo braço. Afastou-se da porta e dirigiu-se ao quarto. Nem um minuto tinha passado e João olhava de novo aquelas portas desta vez com uma chave negra como as portas na mão.
Introduziu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um breve clique. Tirou a chave e guardou-a no bolso das calças. Rodou o puxador e abriu as duas portas .
O escritório parecia um lugar fora do tempo. Várias cadeiras forradas a veludo encontravam-se espalhadas pela sala. De um dos lados um sofá de couro preto. Uma secretária digna de um rei ou presidente encontra-se à frente de uma janela com vista para um cenário que não existia, unicórnios, ninfas e faunos estavam representados nos painéis que cobriam as janelas ao fundo um rio corria. Sobre a secretária estava suspenso um candeeiro antigo, provavelmente com mais de dois séculos. Obviamente os anteriores donos do escritório tinham-no decorado ao seu gosto e os seguintes ocupantes tinham decidido não tirar nada, apenas acrescentando o que lhes pudesse fazer falta . O que mais lhe chamou a atenção foram as estantes com livros que se encontravam ao fundo. Livros cujos títulos lhe pareciam estranhos. Duvidava até que conseguisse ler alguns deles, visto serem escritos em línguas que desconhecia. Havia livros de mitologia, codex mágicos, livros de história e ensaios políticos. Numa das estantes descobriu o que seria uma serie de diários. O seu pai tinha o nome na lombada de quatro desse volumes. Pegou no primeiro quando outro livro lhe chamou a atenção. Na lombada castanha tinha escrito:
“João Pereira e Alves”
E por baixo:.
“Tomo I”
Pegou, também, no livro com o seu nome e abriu-o.
Na folha de rosto do volume dizia:
“Para ti meu Filho,
Que te acompanhe na morte,
Como nunca o fiz em vida”
António Pereira e Costa
João dirigiu-se à secretária levando os diários consigo. Quando lá chegou sentou-se na cadeira do pai, talvez de um antepassado mais remoto, ainda com os diários nos braços. Olhou para a secretária. Um pequeno candeeiro, um cinzeiro, um cachimbo com sinais de não ser usado há anos. E um livro. Provavelmente o pai tinha estado a lê-lo antes de ter o ataque cardíaco que o tinha matado. Pousou os diários em cima de um monte de papeis e ficou a olhar para o livro.
Tinha uma capa de couro claro já gasta quebrada por traços azulados como as veias de um braço. Só de olhar para ele via-se que era um livro antigo.
Fez um esforço para não olhar para ele e pegou no seu diário para se distrair do livro.
Abriu-o e leu novamente a dedicatória do pai. Virou as páginas até encontrar a primeira pagina onde pudesse escrever. Pegou numa caneta do porta-canetas do pai e no topo da mesma escreveu a data:
Dez de Março de 19 –
Uma linha abaixo escreveu:
O meu pai morreu há dois dias.
João fica a olhar para a página. Não tem mais nada que escrever por isso fecha o diário. Os olhos voltam a encontrar o livro. Rapidamente pega no primeiro volume do diário do pai e abre-o na primeira página escrita.
O que lê deixa-o perturbado. A data é a mesma mas quarenta anos antes. E a frase igual.
O meu pai morreu há dois dias.
Só que a entrada do pai continua,
Acordei e a casa estava vazia.
Sem mais que fazer senti-me atraído pelo escritório, onde nunca antes tinha entrado.
Um livro esta pousado à minha frente na secretária. Sinto-o a puxar-me de volta a ele sempre que desvio o olhar.
Fechou o diário. O pai tinha passado o mesmo neste dia há quarenta anos. Olhou o livro mais uma vez, levantou-se, apressadamente, e dirigiu-se para a porta. Agarrou o puxador mas antes de o conseguir rodar, estava novamente a olhar para o livro. Sem se aperceber estava de novo sentado na secretaria. Tocou o livro e um arrepio subiu-lhe pela espinha, como que se tivesse sido percorrido por uma corrente eléctrica. Estava assustado mas ainda assim abriu o livro...
*
A última fase do ritual era a pior. Pegou no punhal que tinha trazido do escritório e dizendo novamente o encantamento fez um golpe no braço. A sua voz tremeu mas não vacilou na recitação. Tinha tudo que ser exacto.
Após terminar o encantamento, esperou conforme dizia no livro, por duas horas. Horas essas em que permaneceu em silêncio e de olhos fechados na velha garrafeira que existia por baixo da casa.
Abriu os olhos e viu que nada tinha mudado. Não tinha aparecido nenhum demónio a oferecer-lhe o que quer que fosse em troca da sua alma nem um ser angélico a oferecer-lhe Salvação. Não se sentia diferente em nada.
Levantou-se e sacudindo o pó das calças subiu as escadas que davam acesso à casa.
Estava a ir para o quarto para descansar quando parou à porta do escritório. Queria continuar mas algo o forçava a entrar.
Abriu a porta com a chave que trazia sempre consigo no bolso e entrou.
A cadeira da secretaria estava virada para o quadro, agora uma janela para um outro mundo, onde as ninfas, com risinhos abafados, fugiam dos faunos por entre as árvores e o rio sussurrava por entre as ervas e pedras do seu leito.
Sentiu um cheiro a tabaco no ar que antes não tinha sentido.
A porta fechou-se atrás dele, sozinha, e João voltou o olhar na sua direcção.
Um súbito ranger vindo da secretaria sobressaltou-o.
Virou-se a medo.
“Está alguém aí” disse. Quando tinha descido para a garrafeira estava sozinho em casa, como tinha sido habitual nos últimos dias, mas alguém podia ter chegado entretanto. “Se bem que eu tenho a única chave” pensou.
A cadeira girou e o que viu fê-lo soltar um grito abafado.
“Olá João”, disse quem estava sentado na cadeira, “Não tenhas medo. Não te vou fazer mal.”
“Tu... Tu morreste!” gritou, “Foste enterrado à pouco mais de uma semana! É um sonho, só pode ser um sonho”.
O pai, meio etéreo olhou para ele com um olhar resignado. Por trás dele as ninfas e faunos deixavam as suas correrias e chegavam-se à borda do quadro para melhor ver o espectáculo
“Não meu filho, não é um sonho. Mas tens razão. Morri, fui enterrado e tu fizeste o ritual, como eu o fiz antes de ti quando o meu pai morreu. Mas senta-te, há coisas que precisas saber.”
João aproximou-se de uma das cadeiras e ia sentar-se quando o pai o parou.
“Não João, nessa não. Sim pode ser nessa. A partir do momento em que morri a maldição da nossa família passou para ti. O ritual que fizeste serve apenas para tirares o máximo de proveito dela. Como deves ter notado podes ver-me. Isso é resultado do ritual. Sou a personificação espiritual do homem que era, um fantasma se quiseres. Mas o poder que temos é limitado e estamos confinados a esta sala.”
“Podes também” continuou, “sentir outros seres como eu mesmo que eles não se façam mostrar. Também a magia que ainda resta neste mundo abriu as suas portas para ti. O quê? Sim como no quadro. Todos os homens da nossa família, quer dizer, não todos mas os filhos mais velhos fizeram o ritual após os seus pais morrerem e tiveram os seus conselhos durante a vida até morrerem. Essa é a maldição. Após a morte do pai o filho mais velho só vive por quarenta anos, quer faça ao não o ritual o seu destino passado esse tempo é o mesmo. Com o tempo aprenderás o resto”
Parou e durante minutos ficaram um a olhar para o outro.
Pai e filho. Mestre e discípulo.
Ao fim de longos minutos João engoliu em seco.
“Então somos os dois?” disse.
“Não meu filho. Não somos só os dois.”,
À sua volta João via sombras a tomarem formas, enquanto os seus antepassados se revelavam aos seus novos sentidos.
“Está na hora de conheceres a tua família.”
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Vera
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