quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Circulo Invisível

O primeiro de 2010. Esperemos que seja o primeiro de muitos. Este Ano vou tentar concluir projectos que ja foram iniciados no que parece ter sido outra vida. Esperemos que as coisas corram nesse sentido.
O texto que se segue é, na minha opinão, a história mais forte e pesada que já escrevi. A ideia veio quando ouvia um album dos After Forever intitulado 'Invisible Circles' de onde tirei também o nome da história.


“É demais”, pensou a criança enquanto olhava para o tecto, “É demais. Não aguento mais”.
Estava deitada na cama desde que tinha subido para o quarto num ataque de fúria após mais uma discussão com o pai. As lágrimas, que derramava sempre nestas ocasiões, já tinham secado. Não eram lágrimas de tristeza mas lágrimas de fúria e de frustração. Não havia nada que pudesse fazer para sair desta situação e era isso que a deixava furiosa e frustrada. Era por isso que chorava.
A discussão tinha começado como tantas outras. O Pai, também ele frustrado, por razões que nada tinham a ver com a filha, tinha mais uma vez decidido culpa-la por o que quer que fosse que o irritava hoje. A Mãe com quem anteriormente se passavam todas as discussões, normalmente à volta do tópico desta ter tido que abandonar o emprego devido a uma “catraia incomodativa e irritante”, nas palavras da própria mãe, não se manifestava. Desde que tinha encontrado a Salvação em calmantes e álcool que não se manifestava em nada que dissesse respeito à sua querida filha, nem mesmo quando o pai elevava as discussões para o nível físico.
“Ao menos desta vez não me tentou bater”, pensou a criança enquanto contemplava o tecto que mostrava os desenhos esbatidos de um quarto de bebé cujos pais pensavam ser a salvação para um casamento. Os desenhos transportam-na para o passado e para a sua curta infância.

Tinha dois anos. A sua primeira memória. A mãe estava a falar com alguém. Não sabe o que diz mas sabe que há tristeza na voz da mãe. A conversa parou e a mãe vem ao quarto. A bébé sorri ao ver a mãe. A mãe olha para a bébé e debruça-se no berço. “Vai pegar em mim!”, pensa a bébé. Mas a mãe dá-lhe um estalo e vira as costas deixando a bébé a chorar e a pensar “O que é que eu fiz Mamã?”

Os anos passam e a bébé tem agora cinco anos. De uma maneira sabe que a mãe a culpa por ter tido que deixar o emprego, por ter que deixar a sua vida. Sabe-o pela maneira como a mãe a trata. Como se fosse um elemento indesejado numa vida indesejada. Os pais discutem um com o outro e com ela. Quando param de atribuir culpas um ao outro passam a atribuí-las a ela. Ou então decidem na discussão que é ela a culpada do rumo que a vida delas tomou. Ela promete-lhes que vai ser boa menina. Que se vai portar bem e que vai ficar em silêncio. Que não os vai perturbar ou incomodar mais. Que só quer que eles gostem dela. A resposta é sempre a mesma. Que sabe ela de gostar de alguém? Que devia ter sido uma salvação para eles e que em vez disso os afundou mais.

Tem nove anos. O pai chega a casa. Vê a mãe a dormir no sofá sob o efeito de calmantes uma garrafa de vodka meio vazia tombada no chão. Sentada na cozinha a fazer os trabalhos da escola sente a fúria crescer dentro dele, mas, ainda assim, dirige-se a ele e mesmo antes de dizer seja o que for sente as costas da mão dele no rosto. O impacto é tão forte que a manda contra a parede. Foi a primeira vez. Foi a menos de um ano.

De volta ao presente.
A criança vira-se na cama e fecha os olhos com força para tentar fugir às imagens que passam na sua cabeça. “Tenta dormir e ter sonhos bons”, pensa, “Foge para um mundo só teu.”

Mas as imagens que se formam na sua cabeça não são o escape que procura.
Não, em vez de se ver num mundo de princesas e unicórnios e fadas vê-se num mundo que tem tanto de diferente como de igual.

Vê uma criança caída contra uma parede. De início pensa que é ela mas logo se apercebe do seu erro. A criança que ela era é agora mãe. A criança para que olha é sua filha. O olhar que lança a criança é um olhar cheio de fúria. O seu olhar. Sente que perdeu o controlo da sua vida e que a culpa é daquela criança. Daquele ser indesejado. Sente o que a sua mãe sentiu em relação a ela. Sente a frustração do seu próprio pai. E, enquanto a sua mão desce novamente em direcção a criança que é sua filha, sente a cruel satisfação que os seus pais sentem quando a castigam. Sente-se a pensar “Destruíste a minha vida e eu destruo a tua!”.

É este pensamento que a desperta.
O sonho deixou-a a tremer. Mas, no fundo, finalmente a criança sabe o que tem a fazer.
Os pais já dormem por isso ela desce sem problemas á garagem. Pega numa lata de gasolina que o pai guarda sempre para uma emergência. Ao subir passa pela cozinha e abre o gás do fogão. Começa a espalhar a gasolina aos poucos pela casa e com cuidado abre a porta dos quartos dos pais e põe a lata por baixo da cama. Depois dirige-se ao seu próprio quarto e tomando os calmantes da mãe deixa-se cair na cama. Acende um fósforo e deixa-o cair na poça de gasolina que tem ao lado da cama.
O seu último pensamento é para a filha que teria daí a muitos anos.
“Salvei-te minha querida.”

4 comentários:

Anónimo disse...

Sem dúvida a mais forte, mas também uma das melhore histórias que já escreveste.

_GoDsHanD_ disse...

Muito bom trabalho. ;)

Anónimo disse...

Que medo!
A criança era já muito adulta e mãe era alcoólatra e o pai era... bem... que medo!

Snow disse...

Mas que agradável surpresa.