sábado, 15 de outubro de 2011

The wolfman stole my baby


Esta história andava perdida na minha cabeça.
A ideia veio de uma música de Frankenstein Drag Queens From Planet 13.

A loja de armas estava envolta em penumbra.
O velho atrás do balcão observa o indivíduo de barba com suspeita.
Não sentia medo.
Como podia sentir medo se a única arma com balas na loja era a caçadeira que tinha debaixo do balcão?
Apenas estava curioso com ele. A maneira como se movia e como olhava as armas na parede, a dor e certeza que tinha nos olhos.
O homem pega numa caçadeira da parede.
Uma arma própria para caça grossa, uma arma que não era para qualquer um.
Pousa-a em cima do balcão e aponta para uma faca no expositor.
- Aquela faca. E aquele revolver também. – e após uma pequena pausa – Por favor.
- Quer balas? – diz o velho.
- Balas? – responde, como se tivesse sido apanhado de surpresa.
Claro que uma arma precisa de balas, pensa.
- Sim, vou precisar. – diz nervosamente. – Mas…
- Diga lá. É a primeira vez? Não tenha problemas.
- Não é que… É um pedido estranho. Precisava de… Balas de prata.
O olhar do velho questiona-o antes mesmo de responder.
- Balas de prata? – pergunta.
- Bem, - diz o homem – é melhor começar do inicio.

- Eu e a minha namorada tínhamos chegado de uma viagem nos Estados Unidos que tinha sido um bocado problemática. Tivemos problemas com o Ku Klux Klan e ela acabou por ser raptada, mas isso é outra história e ficou resolvida.
Mas como dizia, tínhamos chegado dos Estados Unidos e decidimos fazer uma viagem pelo interior.
Estávamos numa aldeia bastante acolhedora e após falarmos com alguns dos habitantes decidimos que seria uma boa ideia deixar o carro e fazermos uma caminhada pela montanha e acamparmos durante um dia ou dois antes de voltarmos a seguir viagem.
Assim fizemos e numa quinta de manha partimos em direcção à montanha com a tenda e mantimentos para a caminhada.
O primeiro dia correu bem. Estava um tempo agradável e em algumas horas estávamos no sopé da montanha. Decidimos procura um sitio para acampar junto a um rio. E quando a noite chegou estávamos ambos bastante animados.
Estávamos, deitados sob as estrelas, a fazer planos para o dia seguinte quando o céu começou a escurecer.
Mal tínhamos entrado na tenda quando a chuva começou.
Primeiro uma chuva leve, uma chuva de verão que de certeza logo passaria.
Mas passado pouco tempo transformou-se numa tempestade terrível. Como a tenda não voou foi simplesmente um milagre, tal era a força do vento.
Na manha seguinte sob uma chuva forte arrumamos as coisas e partimos de volta à aldeia.
Mas tal era a tempestade que nos acabamos por perder.
Ao fim de umas horas avistamos um vulto no meio da chuva.
Apressadamente dirigimo-nos a ele na esperança que nos pudesse prestar apoio.
O vulto revelou-se ser de um homem de meia-idade que se ofereceu imediatamente para ajudar.
Levou-nos para uma pequena cabana de caça onde nos explicou que enquanto a tempestade não passasse não seria possível voltarmos à aldeia visto o caminho ser complicado nessas condições.
Mas tínhamos comida e um sítio onde estávamos protegidos do tempo e sentíamo-nos seguros.
O homem, Aldo era o seu nome, era um caçador e estava habituado a este tipo de situações. E era ele que se aventurava a sair da cabana para ver as condições do caminho de volta à aldeia.
Só havia uma coisa que me deixava de pé atrás.
A proximidade que criou com a minha namorada.
Sempre que estávamos juntos Aldo fazia questão de estar perto dela e várias vezes o vi a sussurrar-lhe coisas ao ouvido sem nunca conseguir perceber o que lhe dizia.
E em certa altura admitiu que era a mulher mais interessante que já tinha visto.
Uma tarde ele saiu para ver como estavam os caminhos mas ao contrário do que era normal não voltou antes do cair da noite.
Nessa noite não dormi, num misto de preocupação e medo.
Estava quase a amanhecer e foi então que o vi.
Um lobo enorme dirigia-se à cabana. Tinha pelo cinzento e a boca manchada de sangue.
E, perante os meus olhos, o lobo começou a transformar-se.
Em segundos não era mais um lobo mas um homem.
Sim, era o Aldo.
De imediato deitei-me e fiz de conta que dormia.
Quando ouvi a porta a abrir simulei acordar.
Aldo desculpou a sua ausência dizendo que teve que se abrigar numa gruta durante a noite por causa da tempestade.
Durante toda a manha só pensava em como fugir àquele monstro.
Mas de alguma maneira ele sabia.
Acordei e o sol estava a pôr-se. A minha cabeça andava à roda. Tinha-me drogado.
Nem ele nem a minha namorada estavam na cabana.
A tempestade acalmou passado dois dias e consegui com alguma dificuldade chegar à aldeia mas ninguém sabia a quem me referia quando falei do homem que tinha encontrado na montanha.
E é esta a história que me trouxe aqui. A história de como o lobisomem me levou a namorada.

O velho olhou-o com um ar surpreendido.
- Bem amigo quanto às balas de prata não o posso ajudar mas talvez… Espere um momento. – e dirigiu-se a uma vitrine do outro lado da loja.
De lá tirou uma bolsa em couro e pousou-a no balcão.
Abriu-a e tirou de lá uma faca com cabo em madre pérola.
- Prata pura – disse – se o conseguir parar com as balas normais pode terminar o trabalho com isto. É oferta.
Observou-o a sair da loja e ficou a imaginar que histórias o homem teria para contar da próxima vez…

sábado, 8 de outubro de 2011

Untitled

Esta cresceu do nada. Se escrevi alguma coisa que possa dizer que não sabia onde ia acabar é esta.
A história foi evoluindo para além do meu controlo e há partes que acho que passaram directamente da cabeça para o ecrã (esta foi das poucas escritas directamente no computador) porque não me lembro de as escrever.

Há muito que pensava usar uma mulher de vermelho numa história (não que tenha algum sentido especial) mas a presença dela aqui até a mim me surpreendeu.
Quem sabe não haja mais mulheres de vermelho num futuro próximo.

Olho à minha volta.
O bar está escuro e as poucas pessoas presentes estão atentas à sua vida e não à pessoa do lado.
Todas menos uma.
Os seus olhos não descolaram de mim desde que me trouxe a cerveja que lhe tinha pedido.

O tempo passa.
Sinto alguém a aproximar-se e levanto os olhos  do copo.
Ela pousa duas cervejas na mesa, ao lado do meu copo ainda cheio.
Não pedi nada, digo.
Eu sei, responde-me enquanto se senta, mas achei que olhar durante duas horas para o mesmo copo deve ser entediante. Nem gás tem já.
Olho para ela directamente, pela primeira vez.
Tem olhos castanhos assim como o cabelo. Veste um vestido vermelho.
Mas, como podes ver trouxe duas. Talvez com companhia te sintas mais tentado a beber.
Pega num dos copos e bebe um golo. Ao pousa-lo novamente na mesa faz um gesto na direcção do outro copo que trouxe.
Não bebes? É um desperdício de cerveja. E boa companhia.
Pego no copo e bebo um golo.

Do nada reparo que passaram horas e que não parei de falar.
Abri a minha alma para ela e revelei tudo o que era.
Todos os meus problemas, preocupações e esperanças.
Em algum momento devo ter chorado pois tinha um lenço na mão que ela me tinha dado.
Enquanto falava fui-me apercebendo de detalhes sobre ela.
O seu cheiro sobrepunha-se a todos os outros. O cheiro a fumo, a cerveja eram substituídos subtilmente por um cheiro só dela, um cheiro suave e ainda assim tão marcante.
O tom de pele, a textura suave que se sentia mesmo sem tocar.
Tudo nela se revelava também para mim.

Levanta-se e olha para mim.
Ainda bem que falaste. Estavas mesmo a precisar.
Vira costas e começa a dirigir-se à porta.
Espera, quase que grito, achas que nos voltamos a ver?
Sem dúvida, diz-me suavemente, claro que sim.
Mas nem sei o teu nome, digo enquanto ela sai em direcção à madrugada.

Saio também mas já não a vejo.
As ruas estão desertas.
Decido ir para casa a pé, o ar vai-me fazer bem.
Vou tão perdido em pensamentos e na mulher de olhos castanhos e vestido vermelho que nem sinto quando o carro me bate.

Estou deitado no chão.
Não está ninguém ao meu lado e sinto a vida a fugir.
Ouço uma voz na minha orelha a dizer-me para não ter medo.
A mesma voz diz para lhe dar a mão e ir com ela.
Eu vou.
Olho para trás e vejo-me deitado no chão numa poça de sangue.
Viro-me e vejo-a.
Ela sorri.
Eu disse que nos víamos outra vez, diz a mulher de vermelho.
E eu sorrio também.


domingo, 25 de setembro de 2011

Bullets & Booze

Levanto-me.
Faz dias que não durmo uma noite inteira e, ainda assim, o pouco que durmo é no sofá.
A cama traz-me muitas memória tuas e ainda assim esta noite decidi deitar-me lá.
Sentia o teu cheiro nos lençois e nas almofadas.
Consiguia ver o teu corpo deitado ao meu lado, os teus braços à minha volta, num abraço do qual não me queria libertar.
E então decidi levantar-me.
Deixar a cama onde por momentos tive a felicidade nos meus braços.

Passaram apenas minutos e parecem-me horas.
Em frente a mim na mesa em frente ao sofa uma garrafa de Jack Daniels oha para mim.
A garrafa de Jack já vai a meio e brinco com as balas de uma Colt .45.
Uma a uma meto as balas na camara.
Sinto-me asfixiado pelas paredes que se parecem fechar sobre mim.
Pouso a Colt na mesa e saio porta fora.

Na rua o ar frio desperta-me.
Mas não o suficiente para te esquecer.
Estás gravada em mim e estarás para sempre.
É impossivel fugir de algo que se tornou  parte de nós e ainda assim tento escapar ao teu fantasma.
Dou por mim em ruas tantas vezes percorridas a fugir de outros fantasmas.
Mas há algo que mudou dentro de mim que faz esta vez ser diferente.

Volto a casa.
Novamente no sofá, tiro uma a uma as balas da Colt.
Quando estão cinco na mesa páro.
Encho o copo de Jack e rodo o tambor.
Puxo o cão da arma atrás e encosto-a ao queixo.
Aperto o gatilho.

Bebo o copo de Jack e torno a enchê-lo.
Na minha cabeça tu sorris.
Como adoro o teu sorriso.
Quantos copos conseguirei beber até te escapar?

Puxo o cão e, com a Colt debaixo do queixo, disparo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Rituais

Sentava-se de pernas cruzadas no meio do duplo circulo desenhado no chão a tinta vermelha como que adormecido. Estava descalço. Vestia umas calças de ganga pretas e o seu peito encontrava-se nu e tinha desenhado um estranho símbolo.
Entre os dois círculos estavam inscritas runas e símbolos cabalísticos copiados com uma precisão milimétrica que havia retirado de um livro que tinha encontrado dias antes no escritório do seu pai onde nunca tinha entrado até àquela altura.
Tinha lido o Livro, com imensa atenção nos últimos dias, uma e outra vez até quase o saber de cor e seguido todos os passos que vinham nele descritos. Tinha, na hora que antecedeu a sua descida para a garrafeira, preparado e bebido a poção que vinha descrita na preparação para o ritual e, depois de desenhado o círculo e as runas, entoado as palavras cerimoniais de invocação.
Invocação de quê não sabia, apenas sabia que o Livro prometia que valia a pena e que a vida dele nunca mais seria a mesma.

*

João tem 15 anos. É um jovem introvertido sempre agarrado a livros que lê sempre que tem oportunidade. Não é mau aluno. Pelo contrário tem excelentes notas em tudo o que não diga respeito a desporto, o que faz com que, juntamente com a obsessão por livros, seja gozado pelos outros rapazes. Não tem grande dificuldade em falar com raparigas embora também não possua grandes facilidades.
Tinha acabado de ser gozado por um rapaz um ano mais velho enquanto falava com uma rapariga, por quem nutria uma paixão secreta, e que se riu do comentário que o outro rapaz fez quando o director o chamou pelo comunicador.
- O seu pai morreu, João. – disse o director quando João ainda nem tinha fechado a porta do gabinete, fazendo com que este estacasse à entrada. – Está dispensado das aulas por hoje. Mandaremos alguém acompanha-lo a casa.
Virou-se sem responder e dirigiu-se à entrada da escola onde um táxi o esperava.
Quando chegou a casa a tia esperava-o na entrada. Tentou abraça-lo mas ele dirigiu-se para o quarto e deitou-se na cama a chorar.
Mais tarde levantou-se e desceu as escadas em direcção à sala onde família e amigos do pai se encontravam e cumprimentando-os agradeceu os pêsames que lhe iam dando.
O dia que se seguiu, o dia do funeral, foi um borrão de imagens indistintas, de tudo o que aconteceu nesse dia a única que se lembra é, já em casa, de ver a tia sentada em frente à lareira e o chamar.
- João – disse numa voz calma – senta-te um bocadinho a fazer-me companhia.
João sentou-se na cadeira oposta à da tia com a mesa de apoio entre eles.
- Agora é tudo teu. – disse-lhe a tia. – É tudo teu e vais ter de aprender a lidar com isso. Com tudo o que isso acarreta. – apontou para uma caixa em cima da mesa – A chave do escritório do teu pai. Agora é teu. Todos os livros, todos os papéis, todos os segredos, toda a nossa família. É tudo teu. Esta chave, as portas que abre e a sala para a qual as portas abrem são a maior herança desta família. Desde que a nossa família chegou a esta terra à mais de 700 anos que a chave é passada para o filho mais velho após a morte do seu portador. Devia ser o teu tio Carlos a passar-te a chave mas, infelizmente, a morte chegou-lhe antes deste momento e a função coube-me a mim. Há coisas que deves saber. Umas aprenderas através dos livros e papéis que encontrares. Outras descobrirás por ti. A maior parte vai-te ser dita por outros que encontrarás mas duas tens que saber agora. Nenhum dos livros pode sair daquelas portas, nunca. A segunda é que, agora, só tu podes lá entrar, mais ninguém poderá nunca cruzar aquelas portas enquanto fores vivo. Agora vai. Pega na caixa. Amanha falaremos mais. Talvez.
- Boa noite tia. – disse. Mas os olhos dela encontravam-se presos nas chamas da lareira e não lhe respondeu.
Subiu ao quarto e pousou a caixa na mesa de cabeceira. Deitou-se na cama e adormeceu a olhar para ela.
Acordou de manha e apercebeu-se que a casa estava demasiado silenciosa. Bateu à porta do quarto de hospedes onde a tia ia ficar e quando não obteve resposta abriu-a. O quarto estava vazio. A cama mostrava o colchão sem lençóis. Ninguém tinha dormido aqui esta noite.
“Adormeceu na sala”, pensou João. Descendo as escadas viu as cinzas frias na lareira mas não havia sinal da tia.
Procurou a governanta e como também não a descobriu dirigiu-se à cozinha e preparou o pequeno almoço. Enquanto tomava o café com leite pensou no que faria. Decidiu ir à escola entregar a justificação que o permitia ficar em casa mais 5 dias apenas como desculpa para sair de casa.
Quando chegou à escola reparou que todos os olhos se viravam para ele. Ouvia comentários serem sussurrados à sua passagem. Entregou a justificação no gabinete do director e ainda pensou ficar mas não conseguia aguentar os olhares por isso voltou para casa.
Ainda não havia sinal da tia quando voltou.
Subiu as escadas em direcção ao quarto para ir buscar o livro que estava a ler mas algo o fez parar em frente ao escritório do pai. As portas em madeira negra com veios avermelhados que outrora o assustaram eram-lhe agora chamativas. Pôs a mão no puxador pela primeira vez em 15 anos e sentiu um arrepio eléctrico pelo braço. Afastou-se da porta e dirigiu-se ao quarto. Nem um minuto tinha passado e João olhava de novo aquelas portas desta vez com uma chave negra como as portas na mão.
Introduziu a chave na fechadura e rodou-a. Ouviu-se um breve clique. Tirou a chave e guardou-a no bolso das calças. Rodou o puxador e abriu as duas portas .
O escritório parecia um lugar fora do tempo. Várias cadeiras forradas a veludo encontravam-se espalhadas pela sala. De um dos lados um sofá de couro preto. Uma secretária digna de um rei ou presidente encontra-se à frente de uma janela com vista para um cenário que não existia, unicórnios, ninfas e faunos estavam representados nos painéis que cobriam as janelas ao fundo um rio corria. Sobre a secretária estava suspenso um candeeiro antigo, provavelmente com mais de dois séculos. Obviamente os anteriores donos do escritório tinham-no decorado ao seu gosto e os seguintes ocupantes tinham decidido não tirar nada, apenas acrescentando o que lhes pudesse fazer falta . O que mais lhe chamou a atenção foram as estantes com livros que se encontravam ao fundo. Livros cujos títulos lhe pareciam estranhos. Duvidava até que conseguisse ler alguns deles, visto serem escritos em línguas que desconhecia. Havia livros de mitologia, codex mágicos, livros de história e ensaios políticos. Numa das estantes descobriu o que seria uma serie de diários. O seu pai tinha o nome na lombada de quatro desse volumes. Pegou no primeiro quando outro livro lhe chamou a atenção. Na lombada castanha tinha escrito:

“João Pereira e Alves”

E por baixo:.

“Tomo I”

Pegou, também, no livro com o seu nome e abriu-o.
Na folha de rosto do volume dizia:

“Para ti meu Filho,
Que te acompanhe na morte,
Como nunca o fiz em vida”

António Pereira e Costa

João dirigiu-se à secretária levando os diários consigo. Quando lá chegou sentou-se na cadeira do pai, talvez de um antepassado mais remoto, ainda com os diários nos braços. Olhou para a secretária. Um pequeno candeeiro, um cinzeiro, um cachimbo com sinais de não ser usado há anos. E um livro. Provavelmente o pai tinha estado a lê-lo antes de ter o ataque cardíaco que o tinha matado. Pousou os diários em cima de um monte de papeis e ficou a olhar para o livro.
Tinha uma capa de couro claro já gasta quebrada por traços azulados como as veias de um braço. Só de olhar para ele via-se que era um livro antigo.
Fez um esforço para não olhar para ele e pegou no seu diário para se distrair do livro.
Abriu-o e leu novamente a dedicatória do pai. Virou as páginas até encontrar a primeira pagina onde pudesse escrever. Pegou numa caneta do porta-canetas do pai e no topo da mesma escreveu a data:

Dez de Março de 19 –

Uma linha abaixo escreveu:

O meu pai morreu há dois dias.

João fica a olhar para a página. Não tem mais nada que escrever por isso fecha o diário. Os olhos voltam a encontrar o livro. Rapidamente pega no primeiro volume do diário do pai e abre-o na primeira página escrita.
O que lê deixa-o perturbado. A data é a mesma mas quarenta anos antes. E a frase igual.

O meu pai morreu há dois dias.

Só que a entrada do pai continua,

Acordei e a casa estava vazia.
Sem mais que fazer senti-me atraído pelo escritório, onde nunca antes tinha entrado.
Um livro esta pousado à minha frente na secretária. Sinto-o a puxar-me de volta a ele sempre que desvio o olhar.

Fechou o diário. O pai tinha passado o mesmo neste dia há quarenta anos. Olhou o livro mais uma vez, levantou-se, apressadamente, e dirigiu-se para a porta. Agarrou o puxador mas antes de o conseguir rodar, estava novamente a olhar para o livro. Sem se aperceber estava de novo sentado na secretaria. Tocou o livro e um arrepio subiu-lhe pela espinha, como que se tivesse sido percorrido por uma corrente eléctrica. Estava assustado mas ainda assim abriu o livro...

*

A última fase do ritual era a pior. Pegou no punhal que tinha trazido do escritório e dizendo novamente o encantamento fez um golpe no braço. A sua voz tremeu mas não vacilou na recitação. Tinha tudo que ser exacto.
Após terminar o encantamento, esperou conforme dizia no livro, por duas horas. Horas essas em que permaneceu em silêncio e de olhos fechados na velha garrafeira que existia por baixo da casa.
Abriu os olhos e viu que nada tinha mudado. Não tinha aparecido nenhum demónio a oferecer-lhe o que quer que fosse em troca da sua alma nem um ser angélico a oferecer-lhe Salvação. Não se sentia diferente em nada.
Levantou-se e sacudindo o pó das calças subiu as escadas que davam acesso à casa.
Estava a ir para o quarto para descansar quando parou à porta do escritório. Queria continuar mas algo o forçava a entrar.
Abriu a porta com a chave que trazia sempre consigo no bolso e entrou.
A cadeira da secretaria estava virada para o quadro, agora uma janela para um outro mundo, onde as ninfas, com risinhos abafados, fugiam dos faunos por entre as árvores e o rio sussurrava por entre as ervas e pedras do seu leito.
Sentiu um cheiro a tabaco no ar que antes não tinha sentido.
A porta fechou-se atrás dele, sozinha, e João voltou o olhar na sua direcção.
Um súbito ranger vindo da secretaria sobressaltou-o.
Virou-se a medo.
“Está alguém aí” disse. Quando tinha descido para a garrafeira estava sozinho em casa, como tinha sido habitual nos últimos dias, mas alguém podia ter chegado entretanto. “Se bem que eu tenho a única chave” pensou.
A cadeira girou e o que viu fê-lo soltar um grito abafado.
“Olá João”, disse quem estava sentado na cadeira, “Não tenhas medo. Não te vou fazer mal.”
“Tu... Tu morreste!” gritou, “Foste enterrado à pouco mais de uma semana! É um sonho, só pode ser um sonho”.
O pai, meio etéreo olhou para ele com um olhar resignado. Por trás dele as ninfas e faunos deixavam as suas correrias e chegavam-se à borda do quadro para melhor ver o espectáculo
“Não meu filho, não é um sonho. Mas tens razão. Morri, fui enterrado e tu fizeste o ritual, como eu o fiz antes de ti quando o meu pai morreu. Mas senta-te, há coisas que precisas saber.”
João aproximou-se de uma das cadeiras e ia sentar-se quando o pai o parou.
“Não João, nessa não. Sim pode ser nessa. A partir do momento em que morri a maldição da nossa família passou para ti. O ritual que fizeste serve apenas para tirares o máximo de proveito dela. Como deves ter notado podes ver-me. Isso é resultado do ritual. Sou a personificação espiritual do homem que era, um fantasma se quiseres. Mas o poder que temos é limitado e estamos confinados a esta sala.”
“Podes também” continuou, “sentir outros seres como eu mesmo que eles não se façam mostrar. Também a magia que ainda resta neste mundo abriu as suas portas para ti. O quê? Sim como no quadro. Todos os homens da nossa família, quer dizer, não todos mas os filhos mais velhos fizeram o ritual após os seus pais morrerem e tiveram os seus conselhos durante a vida até morrerem. Essa é a maldição. Após a morte do pai o filho mais velho só vive por quarenta anos, quer faça ao não o ritual o seu destino passado esse tempo é o mesmo. Com o tempo aprenderás o resto”
Parou e durante minutos ficaram um a olhar para o outro.
Pai e filho. Mestre e discípulo.
Ao fim de longos minutos João engoliu em seco.
“Então somos os dois?” disse.
“Não meu filho. Não somos só os dois.”,
À sua volta João via sombras a tomarem formas, enquanto os seus antepassados se revelavam aos seus novos sentidos.
“Está na hora de conheceres a tua família.”

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana III

[John]
Conheci-a numa noite ao entrar para o metro.
Entrei na carruagem a correr e foi contra ela deitando-lhe os livros que trazia na mão ao chão.
Ela baixou-se para os apanhar e eu baixei-me também para ajudar.
Enquanto o fazia pedi-lhe desculpa. Ela olhou para mim e eu perdi-me nos olhos dela.

[Rosie]
Tive que repetir o que tinha dito porque ele não me parecia ouvir.
Para aí à terceira vez que disse 'de nada' é que ele pareceu acordar.
Passou-me os livros que tinha apanhado e apontou para um deles.
Perguntou-me se gostava do autor. Disse que era um dos preferidos dele. Eu disse que estava a gostar mas que me assustava um bocadinho.

[John]
Mas é essa a intenção não é?, disse-lhe.
Para quê ler histórias de fantasmas se não para nos assustarmos.
Falamos mais uns minutos até ela dizer que estava a chegar à paragem dela.
Ganhei coragem e perguntei se não queria combinar um café.
Ficou a olhar para mim enquanto as portas abriam.
Tenho que sair, disse. E saiu da carruagem. Tentei sair atrás dela mas as portas já estavam a fechar.
Fiquei colado ao vidro enquanto a via afastar-se na direcção da saída e de um grupo de gunas que se encontrava a um canto.
O metro arrancou...

[Rosie]
Deve ter passado uma semana até o ter visto outra vez.
Estava a ir para casa quando alguém gritou na minha direcção.
Não liguei e continuei a andar até sentir alguém a correr na minha direcção.
Olhei para trás e vi-o a vir na minha direcção a gritar 'espera'. Estava ofegante quando chegou a à minha beira.
Olá, disse-me ele, não sei se te lembras de mim.

[John]
Conheci-te no metro no outro dia, disse-lhe.
Sim lembro-me, respondeu.
Disse-lhe que não me tinha respondido ao convite para o café.
O meu namorado é um bocado possessivo, foi a resposta dela.
Um café, disse-lhe, não é nada de mais.
Olhou à volta como que à procura de algo.

[Rosie]
Não havia ninguém à volta na rua.
Há ali um café, disse-me.
Ok, respondi, vamos.
Entramos no café e sentei-me numa das mesas do canto o mais escondida possível.
Ficamos sem dizer nada até a empregada vir à nossa mesa.

[John]
Incrível como era ainda mais bonita do que a imagem que tinha na memória.
Na mesa do café, manchada pelo uso e pelos anos, o seu cabelo ruivo ondulado brilhava debaixo das luzes fluorescentes e os olhos verdes em que me tinha perdido brilhavam de excitação e medo.
A empregada anotou o nosso pedido e quando se afastou da mesa olhei para ela que olhava pela janela.
Sabes, disse-lhe, não precisas de ter medo, só quero mesmo conversar, às vezes é complicado encontrar pessoas com os mesmos gostos.
Não..., a sua voz tremia, não é de ti que tenho medo.
Quando ia perguntar-lhe o que se passava, embora no fundo soubesse o que era, a empregada chegou com as bebidas.

[Rosie]
Pousou o chá verde à minha frente e o café à frente dele.
Preto, sem açúcar.
O cheiro forte do café invadia os meus sentidos e vou sempre recorda-lo.
Acabei o livro, disse-lhe casualmente, tinhas razão a excitação e o medo são o que nos faz continuar.
É como ler um romance e não sentir aquela sensação no nosso coração não é?, disse-me ele.
E as horas passaram enquanto falávamos.
Tenho que ir, disse-lhe olhando para o relógio.

[John]
Pegou num guardanapo, escreveu algo e dobrando-o passou-mo.
Comecei a abri-lo.
Agora não, disse-me.
Tirou a carteira da mala e ia a tirar dinheiro.
Deixa, disse-lhe, eu ofereço.
Agradeceu e pediu desculpa mas tinha mesmo que ir embora.
Eu disse que sim e ia a levantar-me mas ela pediu-me para ficar.

[Rosie]
Saí do restaurante a correr e apanhei o metro.
Já estava atrasada e sabia que isso não ia ser nada bom.
Mas o que estava feito não podia ser revertido.
Nunca devia ter entrado naquele café, e, enquanto parte de mim estava arrependida a outra não.
Estava mais de uma hora atrasada quando cheguei ao encontro com o meu namorado.

[John]
Fiquei a olhar para o guardanapo durante não sei quanto tempo.
Adorei a conversa, dizia, e por baixo um numero de telemóvel, uma hora, e a assinatura, Rosie.
Fiquei no café até chegar a hora indicada no papel e quando chegou escrevi uma SMS e enviei-a.
Dizia simplesmente 'temos que repetir, John'.
Não obtive resposta.
Saí do café e já passando das duas da manha fui para casa a pé.

[Rosie]
Disse-lhe que me tinha atrasado no trabalho.
Sabia que se dissesse que tinha ido tomar café com um desconhecido que ele se passava por isso achei melhor arranjar uma desculpa.
Liga para casa, disse-me, já que chegaste tarde agora vais ficar comigo. Diz que vais ficar com uma das tuas amigas, continuou.
Tentei dizer-lhe que o meu pai não ia gostar de ser avisado assim em cima da hora mas ele não quis ouvir.
Não é com o teu velho que te tens que preocupar mas comigo, disse.
Por isso liguei.
Por isso que estava com ele quando a mensagem chegou.

[John]
Não tive resposta.
Pensei que quando chegasse a casa do café, o que demora mais ao menos quarenta e cinco minutos a pé, ela teria dito qualquer coisa.
Mas nada.

[Rosie]
Foi terrível.
O telemóvel deu sinal de mensagem e embora me tenha apercebido deixei passar.
Talvez ele não tivesse ouvido ou pensasse que fosse de outra pessoa.
Mas não.
Não vais ver a mensagem?, disse-me.
Deixa, respondi, agora tou contigo. Inclinei-me para o beijar mas ele afastou-me e pediu-me o telemóvel.
Tentei argumentar que não devia ser nada importante mas o olhar dele fez-me obedecer.
Nada de importante não é?, disse enquanto me dava um estalo.
Ficaste a trabalhar?, gritou.
Outro estalo.
Temos que repetir? O que é que temos que repetir?, notava-se a raiva na voz dele.
Cada frase era pontuada por um estalo.
John é?, tinha os olhos raiados de sangue, Se descubro quem ele é vamos ver se vai ter vontade de repetir o que lhe vou fazer..
Tentava falar mas não conseguia falar.
Agarrou-me pelos cabelos e meteu-me dentro do carro. Duas ruas acima da minha parou.
Sai, disse, não te posso ver mais hoje.

[John]
Estava atrasado novamente para o metro.
A porta fechou e lá estava ela.
Rosie, comecei a dizer chegando-me à beira dela.
Não fales comigo, disse-me.
A porta abriu e ela saiu a correr.
Saí atrás dela.
Rosie que se passa?, disse enquanto a seguia.

[Rosie]
Não podemos ser visto juntos, disse-lhe, se o meu namorado descobre.
Pôs-me mão no ombro e forçou-me a virar.
Foi então que viu a minha cara.
Rosie foi ele que te fez isto?, perguntou.
Fui assaltada a ir para casa, respondi.
Comecei a chorar.

[John]
Foi ele não foi?, disse-lhe, Rosie não podes deixar que ele te faça isto.
Negou.
Disse novamente que tinha sido assaltada que se quisesse podia perguntar à polícia.
Tinha apresentado queixa.
Mas eu sabia.
Rosie, disse, foi por causa da mensagem?
Olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas.
Assaltada disse.

[Rosie]
Virei-lhe as costas e comecei a afastar-me da estação.
Sabia que se me atrasasse seria castigada.
Agora a mínima coisa servia como desculpa para uma tareia.
Mas não tinha como fugir.

[John]
Porque o defendes Rosie? Confessa, diz o que ele te fez, gritei na direcção dela.
A resposta dela deixou-me gelado.
Comecei a apanhar o autocarro para a evitar.
Para não ir falar com ela.
Às vezes vou ao velho café na esperança de a ver mas também ela deve ter mudado os seus hábitos porque nunca a vejo.
Mas todas as noites pego no guardanapo e leio as palavras que ela escreveu na nossa primeira, e única, saída juntos.
E por momentos sou feliz.

[Rosie]
Porque o amo, foi a minha resposta.
Era o que ele precisava ouvir.
Foi a minha maior mentira mas precisava que ele se afastasse.
Tinha medo do que podia acontecer se não nos afastássemos.
Não por mim mas por ele.
Vejo-o no café onde nos encontramos aquela primeira vez.
Os seus olhos procuram algo e tenho a esperança que seja a mim mas não me posso revelar.
Durmo com o livro de fantasmas na mesa-de-cabeceira.
Sinto que assim o tenho perto de mim.
Leio uma pagina todos os dias, quando consigo abrir os olhos o suficiente para ler.
E nessas alturas, por momentos, sou feliz.


Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

sábado, 3 de julho de 2010

Projecto 23 - Semana II


O bar encontrava-se meio iluminado.
John sentava-se numa das mesas do canto.
Tinha pedido um whisky e olhava para o copo há dez minutos.
No palco uma loira dançava provocantemente mas até esse facto lhe passava despercebido.

O dia tinha-lhe corrido mal.
O contracto que tinha vindo fechar a Washington com o Departamento de Defesa tinha ido por água abaixo quando o Senado tinha votado contra a entrada dos Estados Unidos na guerra.
Ia ser o grande contracto da sua carreira e a sua maior possibilidade de subir na empresa.
Era importante para ele e para a empresa.
E para a sua mulher.
Sim, também era importante para ela.
Nunca tinha sido frequentador de bares, muito menos este tipo de bares, mas era o mais perto do aeroporto e precisava desesperadamente de uma bebida.

A loira, provavelmente de algum país das ex-Republicas Soviéticas, saiu do palco dando lugar a uma mulher como nunca antes tinha visto.
O cabelo preto e comprido caía-lhe ao longo das costas. A pele em tons de caramelo brilhava debaixo das luzes do palco. E os olhos verdes brilhantes brilhavam.
E, ainda assim, parecia envolta por um nevoeiro que tornava as suas feições baças e mortiças.
Os seus movimentos enquanto dançava eram fluidos e ia tirando a roupa com gestos hipnotizantes e John não conseguia tirar os olhos dela.
Quando saiu do palco o apresentador pediu uma salva de palmas para Ester e o pouco publico do bar aplaudiu.

John voltou a olhar para o copo.
Pegou nele e agitou-o fazendo as pedras de gelo tilintarem ao baterem umas nas outras.
Pousou o copo à espera que o liquido assentasse.
Imaginou a dançarina a dançar nas ondas âmbar do whisky.
Fechou os olhos e deixou a imagem dançar na sua mente.
Quando os abriu ela estava sentada do outro lado da mesa.

"Olá.", disse, "Vi que me olhavas enquanto dançava."
John tentou dizer alguma coisa mas não conseguia encontrar as palavras certas.
"Não te preocupes. è para olharem que eu danço. se não olharem estou a fazer algo mal. O que te traz cá?"
“Errr… Problemas… No trabalho… Uma reunião que correu mal. Ainda tinha tempo para o avião de volta a casa. Precisava de beber qualquer coisa.”
“Fizeste bem. E ainda tens mais? Tempo quer dizer. Saio agora e podia ajudar-te a esquecer esses problemas.”
“Eu… Eu sou casado.”
“Parabéns. Mas é só uma dança. Nada de mais.”
John pensou na mulher. Pensou no dia que tinha tido.
Passado uns segundos disse timidamente.
“Quanto?”
Ela sorriu.
“Para ti, querido, nada.”, fez uma pausa, “A ti só peço que não me esqueças.”
“Não acho que isso seja difícil…” disse.
“Mesmo? Então vamos.”, disse, levantando-se da mesa.

“Sei que não é muito” disse, envergonhada, ao entrar no quarto, “mas o meu estilo de vida decaiu um bocado nos últimos anos.”
“Não te preocupes. É bastante… acolhedor.”, disse John olhando à volta
O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama, um cadeirão velho num dos cantos e uma mesa à beira da porta.
“É uma merda mas serve. Senta-te no cadeirão. Pode não parecer mas é confortável.”
John sentou-se.
Ela tirou o casaco e começou a dançar.
Não conseguia tirar os olhos dela e por momentos tudo desapareceu.
O contracto, a empresa, a mulher, o quarto, tudo.
Durante aquele momento só ela existia e só ela importava.
Ela aproximou-se dele e sentando-se no colo dele beijou-o suavemente e sussurrou-lhe:
“Adora-me.”

E ele assim o fez.
E soube naquele momento que nunca a iria esquecer.
E num momento tão depressa como começou a dançar, parou.
Ao sair do quarto John virou-se para traz e disse:
“Obrigado Ester.”

Estava a entrar para o avião quando o telemóvel tocou.
Um bombista tinha explodido a embaixada dos Estados Unidos e o Senado tinha reunido e decidido que afinal os Estados Unidos deviam entrar na guerra.
O contracto estava feito. O seu sucesso garantido.
Sorrindo, sentou-se no seu lugar e fechou os olhos.
Passados uns minutos estava a dormir.
E sonhou.
Sonhou com ela.

No bar, enquanto dançava, brilhando como se um fogo ardesse dentro dela, fechou os olhos.
Na sua cabeça formou-se um pensamento:
“Ishtar, John, o meu nome é Ishtar. E obrigada tu.”



Ishtar é a deusa babilónica e assíria da fertilidade, amor, sexo e guerra.
A cidade que lhe era consagrada Uruk era chamada a cidade das cortesãs e ela mesma conhecida como Cortesã dos Deuses.
Mais tarde esta deusa foi assumida também na Mitologia Nórdica como Easter - a deusa da fertilidade e da primavera.
É irmã gémea de Shamash e filha do importante deus Lua - Sin, e é representada pelo planeta Vênus.
Considerados uma das maravilhas do mundo, os Portões de Ishtar, na Babilónia, foram transportados para um museu na Europa - Museu de Berlim. Uma réplica encontra-se no Iraque.
Juntamente com os leões representados no portão outro dos seus símbolos sagrados é a estrela de oito pontas.
Ishtar tinha alguns rituais de carácter sexual, uma vez que era a deusa da fertilidade, incluindo a chamada prostituição religiosa, no qual o acto sexual servia de ritual sagrado, outros rituais tinham a ver com libações e outras ofertas corporais.
Um ritual importante ocorria no equinócio da primavera, onde os participantes pintavam e decoravam ovos (símbolo da fertilidade) e os escondiam e enterravam em tocas nos campos. Um resquício por trás desse antigo ritual talvez seja o dos ovos de Páscoa, embora não exista uma prova concreta associando os dois rituais. De qualquer forma, em muitas culturas o ovo é considerado um símbolo de fertilidade.



Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

domingo, 27 de junho de 2010

Projecto 23 - Semana I

Dava um dos meus passeios nocturnos quando a vi pela primeira vez.

Há duas semanas que não conseguia dormir e que vagueava pelas ruas da cidade durante horas.
Era a primeira vez que ia para aquela parte da cidade a pé à noite.
Durante o dia as ruas eram percorridas por executivos a caminho dos seus escritórios, pelas pessoas que procuravam pechinchas nas lojas de discos e pelos artistas de rua que actuavam por umas meras moedas.
À noite, com as lojas fechadas, a atracção era outra. E a clientela também.
Ainda hoje não sei o que me levou a percorrer aquela rua mas o certo é que estava lá.
Foi aí que a vi.

Estava encostada ao beiral da porta de uma lavandaria.
Tinha o cabelo castanho cortado curto e os lábios excessivamente pintados.
Os olhos vazios reflectiam uma miríade de sentimentos. Dor e medo eram os mais fáceis de identificar.
Vestia uma saia demasiado curta e um top que acentuava a forma dos seus pequenos seios.
Só quando me aproximei que reparei que era jovem, jovem de mais.

Deve ter reparado que olhava para ela pois virou-se para mim.
“Queres divertir-te?”, disse-me tentando parecer mais segura do que na verdade estava. Conseguia ver isso nos seus olhos.
“Não.”, respondi. “Mas não me importava de ter companhia para um café.”
Olhou para mim confusa.
“Err... Não sei se,,,”.
“Não te preocupes.”, calmamente enquanto apontava para o café do outro lado da rua. “Está aberto toda a noite. Detesto tomar café sozinho e não te faço mal. Prometo.”
Finalmente assentiu e dirigimo-nos ao café.

“Pede o que quiseres.”, disse ao sentar-me. “Pago eu.”
Pediu um hambúrguer com queijo e bacon, uma dose de batatas e um batido de chocolate.
Para mim pedi só um café.
Ficamos em silêncio, a olhar pela janela, enquanto a comida não vinha.
Ia a meio do hambúrguer quando levantou os olhos da mesa e me disse com uma voz que revelava a sua idade.

“Já não comia assim ao tempo. Há duas semanas que como atum e pão. E bebo água.”
Foram as palavras que me revelou primeiro.
Ao longo da noite fui descobrindo mais coisas.
Chamava-se Allison mas gostava que lhe chamassem Allie.
Tinha catorze anos e tinha fugido de casa no dia em que os fez. Tinham passado três meses.
De recordações tinha trazido o cartão de crédito da mãe de onde tinha levantado 800 euros antes de ter sido cancelado e um colar que a avó lhe tinha dado antes de morrer.
Tinha fugido porque era mal tratada. O pai tinha morrido quando ela tinha onze anos e as coisas não tinham sido más até a mãe se voltar a casar o ano passado.
Foi aí que tudo começou.
Quando a mãe saía de casa o padrasto batia-lhe. A mãe não se acreditava e dizia para se parar de meter em confusões na escola. Outra das recordações que tinha trazido do seu último aniversário em casa, disse-me ela, tinha sido acordar com ele em cima dela.
“Disse-me para não fazer barulho. Que ia gostar. Que só ia doer um bocadinho. Disse-me isto enquanto tentava enfiar o caralho dentro de mim. Foi aí que decidi fugir.”, como me feriram estas palavras.
Quando chegou à cidade começou por dormir onde estivesse seca e abrigada do vento mas um dia encontrou outras raparigas e elas acolheram-na.
Eram protegidas por um homem a quem chamavam Pai.
“Não é irónico?”, disse-me.

Os primeiros tempos nem foram maus.
Tinha-lhes dado o dinheiro todo que tinha e não precisou de se preocupar com nada.
“Passado um mês pediram-me mais dinheiro mas eu não tinha. Disseram-me que se não arranjasse que tinha que ir para a rua. Vendi o colar da minha avó. Não faz ideia o que me custou fazê-lo. Era ouro branco com um coração com um A em dourado. Chamava-se Alexandra e deu-mo antes de morrer.”
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Perguntei-lhe onde tinha sido e reconheci o nome da casa de penhores.
“Mas o dinheiro não chegou. E ameaçaram-me novamente e sesta foi a única solução que arranjei.”

Ficamos a conversar até o dia começar a clarear.
Enquanto ela ia à casa de banho paguei a conta e pedi que me embrulhassem uma fatia de tarte.
Dei-lhe a tarte juntamente com um dos meus cartões.
“Jornalista? Um dia ainda escreve sobre mim.”
Sorri e ela sorriu-me de volta.
Fui a carteira e dei-lhe cem euros que tinha levantado após pagar a conta.
“Não posso aceitar. Já me deu demais.”
“Pelo teu tempo e companhia”, disse.
Sorriu novamente e virando-me costas desceu a rua em direcção a lado nenhum.

No dia seguinte fui à loja de penhores mas o colar já não se encontrava lá.
Tinha sido comprado por uma rapariga de cabelo castanho curto.
Passados uns dias recebia uma carta no correio.
Era dela.
Após a nossa conversa tinha ido para a porta da loja esperar que ela abrisse para comprar o colar de volta.
“Não podia sair da cidade sem ele.”
Tinha voltado a casa e confrontado a mãe e o padrasto e desta vez a mãe ficou do lado dela.
“Foi o meu anjo salvador.”, terminava ela.
Junto com a carta estava o dinheiro que lhe tinha dado e um vale para uma fatia de tarte num dos cafés da sua cidade que dizia a caneta ”Espero a sua visita.”.

E no fundo da carta.

“P.S.: Escreva sobre mim.”


Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/