Dava um dos meus passeios nocturnos quando a vi pela primeira vez.
Há duas semanas que não conseguia dormir e que vagueava pelas ruas da cidade durante horas.
Era a primeira vez que ia para aquela parte da cidade a pé à noite.
Durante o dia as ruas eram percorridas por executivos a caminho dos seus escritórios, pelas pessoas que procuravam pechinchas nas lojas de discos e pelos artistas de rua que actuavam por umas meras moedas.
À noite, com as lojas fechadas, a atracção era outra. E a clientela também.
Ainda hoje não sei o que me levou a percorrer aquela rua mas o certo é que estava lá.
Foi aí que a vi.
Estava encostada ao beiral da porta de uma lavandaria.
Tinha o cabelo castanho cortado curto e os lábios excessivamente pintados.
Os olhos vazios reflectiam uma miríade de sentimentos. Dor e medo eram os mais fáceis de identificar.
Vestia uma saia demasiado curta e um top que acentuava a forma dos seus pequenos seios.
Só quando me aproximei que reparei que era jovem, jovem de mais.
Deve ter reparado que olhava para ela pois virou-se para mim.
“Queres divertir-te?”, disse-me tentando parecer mais segura do que na verdade estava. Conseguia ver isso nos seus olhos.
“Não.”, respondi. “Mas não me importava de ter companhia para um café.”
Olhou para mim confusa.
“Err... Não sei se,,,”.
“Não te preocupes.”, calmamente enquanto apontava para o café do outro lado da rua. “Está aberto toda a noite. Detesto tomar café sozinho e não te faço mal. Prometo.”
Finalmente assentiu e dirigimo-nos ao café.
“Pede o que quiseres.”, disse ao sentar-me. “Pago eu.”
Pediu um hambúrguer com queijo e bacon, uma dose de batatas e um batido de chocolate.
Para mim pedi só um café.
Ficamos em silêncio, a olhar pela janela, enquanto a comida não vinha.
Ia a meio do hambúrguer quando levantou os olhos da mesa e me disse com uma voz que revelava a sua idade.
“Já não comia assim ao tempo. Há duas semanas que como atum e pão. E bebo água.”
Foram as palavras que me revelou primeiro.
Ao longo da noite fui descobrindo mais coisas.
Chamava-se Allison mas gostava que lhe chamassem Allie.
Tinha catorze anos e tinha fugido de casa no dia em que os fez. Tinham passado três meses.
De recordações tinha trazido o cartão de crédito da mãe de onde tinha levantado 800 euros antes de ter sido cancelado e um colar que a avó lhe tinha dado antes de morrer.
Tinha fugido porque era mal tratada. O pai tinha morrido quando ela tinha onze anos e as coisas não tinham sido más até a mãe se voltar a casar o ano passado.
Foi aí que tudo começou.
Quando a mãe saía de casa o padrasto batia-lhe. A mãe não se acreditava e dizia para se parar de meter em confusões na escola. Outra das recordações que tinha trazido do seu último aniversário em casa, disse-me ela, tinha sido acordar com ele em cima dela.
“Disse-me para não fazer barulho. Que ia gostar. Que só ia doer um bocadinho. Disse-me isto enquanto tentava enfiar o caralho dentro de mim. Foi aí que decidi fugir.”, como me feriram estas palavras.
Quando chegou à cidade começou por dormir onde estivesse seca e abrigada do vento mas um dia encontrou outras raparigas e elas acolheram-na.
Eram protegidas por um homem a quem chamavam Pai.
“Não é irónico?”, disse-me.
Os primeiros tempos nem foram maus.
Tinha-lhes dado o dinheiro todo que tinha e não precisou de se preocupar com nada.
“Passado um mês pediram-me mais dinheiro mas eu não tinha. Disseram-me que se não arranjasse que tinha que ir para a rua. Vendi o colar da minha avó. Não faz ideia o que me custou fazê-lo. Era ouro branco com um coração com um A em dourado. Chamava-se Alexandra e deu-mo antes de morrer.”
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Perguntei-lhe onde tinha sido e reconheci o nome da casa de penhores.
“Mas o dinheiro não chegou. E ameaçaram-me novamente e sesta foi a única solução que arranjei.”
Ficamos a conversar até o dia começar a clarear.
Enquanto ela ia à casa de banho paguei a conta e pedi que me embrulhassem uma fatia de tarte.
Dei-lhe a tarte juntamente com um dos meus cartões.
“Jornalista? Um dia ainda escreve sobre mim.”
Sorri e ela sorriu-me de volta.
Fui a carteira e dei-lhe cem euros que tinha levantado após pagar a conta.
“Não posso aceitar. Já me deu demais.”
“Pelo teu tempo e companhia”, disse.
Sorriu novamente e virando-me costas desceu a rua em direcção a lado nenhum.
No dia seguinte fui à loja de penhores mas o colar já não se encontrava lá.
Tinha sido comprado por uma rapariga de cabelo castanho curto.
Passados uns dias recebia uma carta no correio.
Era dela.
Após a nossa conversa tinha ido para a porta da loja esperar que ela abrisse para comprar o colar de volta.
“Não podia sair da cidade sem ele.”
Tinha voltado a casa e confrontado a mãe e o padrasto e desta vez a mãe ficou do lado dela.
“Foi o meu anjo salvador.”, terminava ela.
Junto com a carta estava o dinheiro que lhe tinha dado e um vale para uma fatia de tarte num dos cafés da sua cidade que dizia a caneta ”Espero a sua visita.”.
E no fundo da carta.
“P.S.: Escreva sobre mim.”
Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:
23 temas, 23 Historias, 23 semanas.
Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:
http://confissoesdemerda.blogspot.com/
Há duas semanas que não conseguia dormir e que vagueava pelas ruas da cidade durante horas.
Era a primeira vez que ia para aquela parte da cidade a pé à noite.
Durante o dia as ruas eram percorridas por executivos a caminho dos seus escritórios, pelas pessoas que procuravam pechinchas nas lojas de discos e pelos artistas de rua que actuavam por umas meras moedas.
À noite, com as lojas fechadas, a atracção era outra. E a clientela também.
Ainda hoje não sei o que me levou a percorrer aquela rua mas o certo é que estava lá.
Foi aí que a vi.
Estava encostada ao beiral da porta de uma lavandaria.
Tinha o cabelo castanho cortado curto e os lábios excessivamente pintados.
Os olhos vazios reflectiam uma miríade de sentimentos. Dor e medo eram os mais fáceis de identificar.
Vestia uma saia demasiado curta e um top que acentuava a forma dos seus pequenos seios.
Só quando me aproximei que reparei que era jovem, jovem de mais.
Deve ter reparado que olhava para ela pois virou-se para mim.
“Queres divertir-te?”, disse-me tentando parecer mais segura do que na verdade estava. Conseguia ver isso nos seus olhos.
“Não.”, respondi. “Mas não me importava de ter companhia para um café.”
Olhou para mim confusa.
“Err... Não sei se,,,”.
“Não te preocupes.”, calmamente enquanto apontava para o café do outro lado da rua. “Está aberto toda a noite. Detesto tomar café sozinho e não te faço mal. Prometo.”
Finalmente assentiu e dirigimo-nos ao café.
“Pede o que quiseres.”, disse ao sentar-me. “Pago eu.”
Pediu um hambúrguer com queijo e bacon, uma dose de batatas e um batido de chocolate.
Para mim pedi só um café.
Ficamos em silêncio, a olhar pela janela, enquanto a comida não vinha.
Ia a meio do hambúrguer quando levantou os olhos da mesa e me disse com uma voz que revelava a sua idade.
“Já não comia assim ao tempo. Há duas semanas que como atum e pão. E bebo água.”
Foram as palavras que me revelou primeiro.
Ao longo da noite fui descobrindo mais coisas.
Chamava-se Allison mas gostava que lhe chamassem Allie.
Tinha catorze anos e tinha fugido de casa no dia em que os fez. Tinham passado três meses.
De recordações tinha trazido o cartão de crédito da mãe de onde tinha levantado 800 euros antes de ter sido cancelado e um colar que a avó lhe tinha dado antes de morrer.
Tinha fugido porque era mal tratada. O pai tinha morrido quando ela tinha onze anos e as coisas não tinham sido más até a mãe se voltar a casar o ano passado.
Foi aí que tudo começou.
Quando a mãe saía de casa o padrasto batia-lhe. A mãe não se acreditava e dizia para se parar de meter em confusões na escola. Outra das recordações que tinha trazido do seu último aniversário em casa, disse-me ela, tinha sido acordar com ele em cima dela.
“Disse-me para não fazer barulho. Que ia gostar. Que só ia doer um bocadinho. Disse-me isto enquanto tentava enfiar o caralho dentro de mim. Foi aí que decidi fugir.”, como me feriram estas palavras.
Quando chegou à cidade começou por dormir onde estivesse seca e abrigada do vento mas um dia encontrou outras raparigas e elas acolheram-na.
Eram protegidas por um homem a quem chamavam Pai.
“Não é irónico?”, disse-me.
Os primeiros tempos nem foram maus.
Tinha-lhes dado o dinheiro todo que tinha e não precisou de se preocupar com nada.
“Passado um mês pediram-me mais dinheiro mas eu não tinha. Disseram-me que se não arranjasse que tinha que ir para a rua. Vendi o colar da minha avó. Não faz ideia o que me custou fazê-lo. Era ouro branco com um coração com um A em dourado. Chamava-se Alexandra e deu-mo antes de morrer.”
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Perguntei-lhe onde tinha sido e reconheci o nome da casa de penhores.
“Mas o dinheiro não chegou. E ameaçaram-me novamente e sesta foi a única solução que arranjei.”
Ficamos a conversar até o dia começar a clarear.
Enquanto ela ia à casa de banho paguei a conta e pedi que me embrulhassem uma fatia de tarte.
Dei-lhe a tarte juntamente com um dos meus cartões.
“Jornalista? Um dia ainda escreve sobre mim.”
Sorri e ela sorriu-me de volta.
Fui a carteira e dei-lhe cem euros que tinha levantado após pagar a conta.
“Não posso aceitar. Já me deu demais.”
“Pelo teu tempo e companhia”, disse.
Sorriu novamente e virando-me costas desceu a rua em direcção a lado nenhum.
No dia seguinte fui à loja de penhores mas o colar já não se encontrava lá.
Tinha sido comprado por uma rapariga de cabelo castanho curto.
Passados uns dias recebia uma carta no correio.
Era dela.
Após a nossa conversa tinha ido para a porta da loja esperar que ela abrisse para comprar o colar de volta.
“Não podia sair da cidade sem ele.”
Tinha voltado a casa e confrontado a mãe e o padrasto e desta vez a mãe ficou do lado dela.
“Foi o meu anjo salvador.”, terminava ela.
Junto com a carta estava o dinheiro que lhe tinha dado e um vale para uma fatia de tarte num dos cafés da sua cidade que dizia a caneta ”Espero a sua visita.”.
E no fundo da carta.
“P.S.: Escreva sobre mim.”
Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:
23 temas, 23 Historias, 23 semanas.
Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:
http://confissoesdemerda.blogspot.com/
2 comentários:
Este projecto, meu amigo, vai rockar. Força nisto!!
Adoro este teu texto. Mesmo para começar bem o Projecto
;)
Altamente Miguel! E a ideia deste vosso projecto está excelente. Mal posso esperar pelos textos desta semana.
Continuem!
Ninguém quer que vocês parem.
Beijinho *
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