domingo, 27 de junho de 2010

Projecto 23 - Semana I

Dava um dos meus passeios nocturnos quando a vi pela primeira vez.

Há duas semanas que não conseguia dormir e que vagueava pelas ruas da cidade durante horas.
Era a primeira vez que ia para aquela parte da cidade a pé à noite.
Durante o dia as ruas eram percorridas por executivos a caminho dos seus escritórios, pelas pessoas que procuravam pechinchas nas lojas de discos e pelos artistas de rua que actuavam por umas meras moedas.
À noite, com as lojas fechadas, a atracção era outra. E a clientela também.
Ainda hoje não sei o que me levou a percorrer aquela rua mas o certo é que estava lá.
Foi aí que a vi.

Estava encostada ao beiral da porta de uma lavandaria.
Tinha o cabelo castanho cortado curto e os lábios excessivamente pintados.
Os olhos vazios reflectiam uma miríade de sentimentos. Dor e medo eram os mais fáceis de identificar.
Vestia uma saia demasiado curta e um top que acentuava a forma dos seus pequenos seios.
Só quando me aproximei que reparei que era jovem, jovem de mais.

Deve ter reparado que olhava para ela pois virou-se para mim.
“Queres divertir-te?”, disse-me tentando parecer mais segura do que na verdade estava. Conseguia ver isso nos seus olhos.
“Não.”, respondi. “Mas não me importava de ter companhia para um café.”
Olhou para mim confusa.
“Err... Não sei se,,,”.
“Não te preocupes.”, calmamente enquanto apontava para o café do outro lado da rua. “Está aberto toda a noite. Detesto tomar café sozinho e não te faço mal. Prometo.”
Finalmente assentiu e dirigimo-nos ao café.

“Pede o que quiseres.”, disse ao sentar-me. “Pago eu.”
Pediu um hambúrguer com queijo e bacon, uma dose de batatas e um batido de chocolate.
Para mim pedi só um café.
Ficamos em silêncio, a olhar pela janela, enquanto a comida não vinha.
Ia a meio do hambúrguer quando levantou os olhos da mesa e me disse com uma voz que revelava a sua idade.

“Já não comia assim ao tempo. Há duas semanas que como atum e pão. E bebo água.”
Foram as palavras que me revelou primeiro.
Ao longo da noite fui descobrindo mais coisas.
Chamava-se Allison mas gostava que lhe chamassem Allie.
Tinha catorze anos e tinha fugido de casa no dia em que os fez. Tinham passado três meses.
De recordações tinha trazido o cartão de crédito da mãe de onde tinha levantado 800 euros antes de ter sido cancelado e um colar que a avó lhe tinha dado antes de morrer.
Tinha fugido porque era mal tratada. O pai tinha morrido quando ela tinha onze anos e as coisas não tinham sido más até a mãe se voltar a casar o ano passado.
Foi aí que tudo começou.
Quando a mãe saía de casa o padrasto batia-lhe. A mãe não se acreditava e dizia para se parar de meter em confusões na escola. Outra das recordações que tinha trazido do seu último aniversário em casa, disse-me ela, tinha sido acordar com ele em cima dela.
“Disse-me para não fazer barulho. Que ia gostar. Que só ia doer um bocadinho. Disse-me isto enquanto tentava enfiar o caralho dentro de mim. Foi aí que decidi fugir.”, como me feriram estas palavras.
Quando chegou à cidade começou por dormir onde estivesse seca e abrigada do vento mas um dia encontrou outras raparigas e elas acolheram-na.
Eram protegidas por um homem a quem chamavam Pai.
“Não é irónico?”, disse-me.

Os primeiros tempos nem foram maus.
Tinha-lhes dado o dinheiro todo que tinha e não precisou de se preocupar com nada.
“Passado um mês pediram-me mais dinheiro mas eu não tinha. Disseram-me que se não arranjasse que tinha que ir para a rua. Vendi o colar da minha avó. Não faz ideia o que me custou fazê-lo. Era ouro branco com um coração com um A em dourado. Chamava-se Alexandra e deu-mo antes de morrer.”
Lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Perguntei-lhe onde tinha sido e reconheci o nome da casa de penhores.
“Mas o dinheiro não chegou. E ameaçaram-me novamente e sesta foi a única solução que arranjei.”

Ficamos a conversar até o dia começar a clarear.
Enquanto ela ia à casa de banho paguei a conta e pedi que me embrulhassem uma fatia de tarte.
Dei-lhe a tarte juntamente com um dos meus cartões.
“Jornalista? Um dia ainda escreve sobre mim.”
Sorri e ela sorriu-me de volta.
Fui a carteira e dei-lhe cem euros que tinha levantado após pagar a conta.
“Não posso aceitar. Já me deu demais.”
“Pelo teu tempo e companhia”, disse.
Sorriu novamente e virando-me costas desceu a rua em direcção a lado nenhum.

No dia seguinte fui à loja de penhores mas o colar já não se encontrava lá.
Tinha sido comprado por uma rapariga de cabelo castanho curto.
Passados uns dias recebia uma carta no correio.
Era dela.
Após a nossa conversa tinha ido para a porta da loja esperar que ela abrisse para comprar o colar de volta.
“Não podia sair da cidade sem ele.”
Tinha voltado a casa e confrontado a mãe e o padrasto e desta vez a mãe ficou do lado dela.
“Foi o meu anjo salvador.”, terminava ela.
Junto com a carta estava o dinheiro que lhe tinha dado e um vale para uma fatia de tarte num dos cafés da sua cidade que dizia a caneta ”Espero a sua visita.”.

E no fundo da carta.

“P.S.: Escreva sobre mim.”


Como podem reparar o titulo deste texto esta de algum modo estranho. Isso acontece por causa de um novo projecto que começa hoje. O Projecto vai correr da seguinte forma.:

23 temas, 23 Historias, 23 semanas.

Durante 23 semanas, Miguel Gonçalves aka Angelus e Daniel Lopes aka GodsHand irão escrever 23 historias únicas sobre 23 temas diferentes sendo o desta semana sobre Miudos de rua. Podem encontrar o Historia do Daniel para este tema no blog Confissões de Uma Mente de Merda em:

http://confissoesdemerda.blogspot.com/

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Atrás dos seus olhos

A primeira vez que a vi não lhe prestei muita atenção.

Na verdade demorou até eu perceber que a rapariga que a noite em que me apaixonei por ela não tinha sido a primeira vez que a tinha visto.
Só mais tarde depois de muito pensar nela é que fiz a ligação entre a rapariga da recepção na embaixada e aquela outra rapariga de há tantas noites atrás.
Não havia diferença nenhuma nela.

O cabelo castanho escuro continuava longo e ondulado em contraste com a pele que continuava branca.
O vestido comprido em tons de preto e vermelho que trazia naquela primeira noite em que a vi tinha sido substituído por outro mais curto e inteiramente preto. Mas o estilo mantinha-se.
Confesso que me apaixonei por ela no momento em que a vi naquela sala, sem saber que não era a primeira vez que a via.
O pior é que ela se lembrava de mim.
Estava encostado a um canto a pensar que desculpa poderia ter para ir ter com ela quando a vi a vir na minha direcção.
Desculpa-me, disse ela, não nos conhecemos já?
Eu é que peço desculpa, respondi, mas não tenho muito boa memória para caras.
Não importa, disse ela com um sorriso nos lábios, pagas-me uma bebida e eu perdoo-te. Sou a Mara.
Foi aí que me apercebi o que me tinha chamado a atenção nela.
Os olhos dela eram penetrantes e profundos. Um olhar para eles e ficava-se perdido mesmo com uma sala inteira entre nós. E eu, que na primeira vez tinha ficado indiferente àquele mar que era o azul dos olhos dela, desta vez deixava-me levar e afogar na profundidade que eles possuíam.
Miguel, respondi passado um segundo que pareceu uma eternidade. E teria todo o gosto em pagar-te uma bebida, se estas se pagassem. Mas acompanho-te até ao bar com todo o prazer.

Sentados num sofá junto ao bar a festa deixou de existir.
Os convidados que circulavam pelo salão para serem vistos, os empregados que corriam de um lado para o outro com travessas com aperitivos, os barulhos da festa, tudo desapareceu à nossas volta até ficarmos só os dois.
O próprio salão da embaixada deu lugar aos sítios de que falávamos.
A viagem que ela tinha feito à Finlândia em Fevereiro, as duas noites que passou presa no aeroporto de Boston por causa de uma tempestade e que para ela tinha sido a pior experiencia de sempre. Falei-lhe do meu tempo como adido diplomático em Tel-Aviv, de quando em visita à Colombia por pouco não ia sendo capturado por um grupo de guerrilha não fosse a experiencia do nosso guia nessas situações.

Falamos de tudo o que as nossas vidas eram.
Livros que tínhamos gostado, filmes que tínhamos visto, concertos a que tínhamos ido.
Frequentávamos os mesmos sítios nas cidades em que já tínhamos estado os dois.
Tínhamos ido ao mesmo concerto há uns meses atrás em Berlim.
Chegamos à conclusão que tínhamos os mesmos gostos e que sim, seria possível já nos termos conhecido ou pelo menos encontrado.

À nossa volta a festa foi baixando de intensidade e as pessoas começaram a ir embora. Mas nós não nos demos conta.
O bar fechou e quando começaram a limpar a sala nós ainda estávamos no sofá a conversar.
As pessoas começaram a chegar para o pequeno almoço quando reparamos nas horas.
Tinha-me perdido nos olhos dela e não queria sair mais.
Saímos da embaixada e paramos à porta.

Até quando estás cá?, perguntou-me por fim.
Tenho voo para Haifa depois do almoço, disse.
É pena. Tenho mais dois dias aqui antes de voltar a Bruxelas., disse-me com um ar desiludido.
Podemos almoçar, se quiseres., disse-lhe.
Ela ficou pensativa por um momento.
Não posso, respondeu, tenho um almoço de negócios e não posso mesmo faltar.
Oh, suspirei.
Toma o meu cartão. Não podemos perder o contacto. Quem sabe não nos cruzaremos um dia destes..., disse ela.
Tirei-lhe o cartão da mão tocando-lhe suavemente na mão. Ela olhou para mim sorrindo e pondo-se na ponta dos pés encostou os lábios dela aos meus.
Até uma próxima vez.,disse enquanto virava costas.

Fiquei a olhar para ela enquanto descia a rua na direcção do hotel.
Tentei adiar a viagem mas assuntos importantes forçavam o meu regresso.
Passaram seis anos.

Fomos trocando mensagens, e-mails e postais dos sítios por onde passamos.
Encontramo-nos apenas três vezes depois desse dia e resultado é sempre o mesmo.
Ficamos presos nas histórias um do outro e as horas passam em minutos e depois chega o momento de regressar e, novamente, nos afastarmos.

Ainda assim sei que um dia nos vai ser possível ficar mais que umas horas juntos.
Até esse dia vou sonhar com ela e que me perco para sempre nela sem nunca ter que a abandonar.
E, acima de tudo, vou guardar na memória a calmaria e a emoção que é olhar para aquele mar azul que se esconde...
atrás dos seus olhos.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale (Afterword)

E assim acaba um ciclo.
Podemos dizer que acordamos de uma viagem pelas experiências de três indivíduos que se viram a acordar para a sua própria existência.

Ao escrever estas linhas para fechar o ciclo veio-me à cabeça uma conversa que tive com uma pessoa (peço desculpa por não me lembrar quem foi) que após ler alguns dos meus textos disse que todos começavam com um acordar. A conversa ficou por aí e nunca mais pensei nela. Até hoje.

Mais, hoje enquanto estava a reler um livro sobre um dos meus comics preferidos, veio-me à cabeça a primeira e ultima frase usadas no primeiro arco.
(quem me conhecer sabe que me refiro a Sandman do Neil Gaiman)
A história começa e acaba com a frase “Wake up.”, o que é apropriado visto tratar-se de uma história sobre sonhos. E não serão todas as histórias sonhos?

Acho que todos estes factores ficaram inconscientemente na minha cabeça até lhes dar uso.
E agora finalmente essas ideias estão cá fora.

Sim, é possível que muitas das minhas histórias comecem com alguém a acordar (lembro-me do acordar de Angelo Donovan na “Moon Burns”, que também, em parte, foi influenciado por uma história do Gaiman, e que um dia prometo continuar...) mas nenhuma delas é sobre o “acordar” em si.
Estas três são exactamente sobre isso.
Não sobre alguém que acorda mas sobre o que esse acordar lhe revela.
Sobre o significado desse acordar.
Sobre o efeito que esse acordar tem sobre a pessoa.
Seja um acordar para uma nova vida, o acordar duma personalidade reprimida ou o acordar de uma nova perspectiva.
Não deixa de ser um acordar.

À medida que as foi escrevendo as histórias foram-se tornando mais pessoais.
Cada uma representa um pouco mais de mim e da minha personalidade.
Também eu fui acordando à medida que as escrevia.
Espero que após lerem estas histórias algo tenha acordado dentro de vós como acordou em mim.
Espero encontrar-vos aqui brevemente.

Chegou o momento.
É agora.

São horas de acordar.

Awakenings, A Triptych Tale III

Abri os olhos.
Não queria acreditar.
Estava no Mundo.
Estava sentado num banco de jardim numa qualquer cidade que não tinha como reconhecer.
O Mundo.

Deixei a palavra passear pela minha mente como que para me habituar a ela.
Após tanto tempo cá estava eu novamente. Desta vez não por minha vontade.
Tinha sido expulso. Exilado. Por crimes contra o Pai.
Só defendi o que acreditava e por isso fui castigado.
Banido sem hipótese de retorno.
Para sempre marcado como o inimigo.

O mundo.
Como tinha mudado desde a última vez.
Tudo era diferente do que recordava.
As construções eram megalómanas. Torres ascendiam aos céus desafiando tudo.
Os veículos moviam-se a uma velocidade incrível e as pessoas...
As pessoas eram maravilhosas. Exemplos perfeitos da criação.
Senti uma vontade enorme de me misturar com elas. De as sentir perto de mim. De comunicar com elas.

De repente apercebi-me que não fazia ideia se me seria possível envolver neste mundo.
Será que sabia a linguagem deste sítio onde me encontrava, foi a primeira dúvida que cruzou a minha mente.
Decidi levantar-me.
Quando o fiz quase caí. O meu centro de gravidade tinha mudado. Só aí senti a falta delas.
Tinha-as perdido aquando a minha viagem para o Mundo.
Na minha primeira viagem tinha-as mantido mas então não tinha sido expulso. Era um mensageiro e elas faziam parte da minha função.

Após um momento para me habituar a equilibrar dirigi-me as pessoas que se movimentavam na rua.
Deixei-me ouvir.
Absorvi as vozes e as palavras tentando reconhecer o que até este dia seria para mim automático.
Foi então que reparei na mulher que olhava na minha direcção do outro lado da rua.
Olhava na minha direcção mas não para mim.
O seu olhar era vazio, perdido num horizonte que só ela conseguia ver.
O vento agitava o seu cabelo ruivo que o sol que rilhava por entre as nuvens fazia parecer a chama de um fogo.
Embora vazios os seus olhos verdes emitiam um brilho hipnotizante.
Por momentos perdi-me nela. Perfeita.

Pensei em mim.
Como seria eu agora?
Será que mantinha o mesmo aspecto?
Será que o cabelo loiro comprido se mantinha ou teria sido alterado para algo mais deste mundo? Seria a minha pele ainda demasiado branca que parecia irradiar uma luz própria?
Tentei encontrar um espelho mas não havia nenhum.

Olhei de novo mas ela já não se encontrava lá.
E foi então que me apercebi.
Reconheci-a aquele olhar.
Já o tinha visto no rosto de tantos outros que não sabia como me poderia ter passado.
A única justificação era a mudança que tinha ocorrido em mim.
Mas agora que sabia não a poderia deixar avançar.
Tinha que a encontrar.

Corri para o lado do passeio em que ela se encontrava sem prestar atenção aos carros que buzinavam na minha direcção nem aos gritos, que não percebia, das pessoas no passeio.
Olhei para todos os lados e por pouco não apanhava o seu cabelo no meio da multidão que dobrava uma esquina.
Mais uma vez corri na sua direcção desta vez apanhando-a a entrar num dos edifícios que se disponha a tocar o céu.
Entrei no edifício e não a vi.
Mas sabia para onde se dirigia.
E foi para lá que também fui.

Quando cheguei ao topo do edifício estava cansado.
Era a primeira vez que me sentia assim mas lá estava ela.
O vento era mais forte aqui e o cabelo ruivo voava em todas as direcções como um fogo indomável.
Novamente, por breves momentos, perdi-me nela enquanto ela estudava como subir para o parapeito.
Perfeita.
Ela voltou-se como se tivesse ouvido o meu pensamento.

E falou.
Não sei o que disse mas sabia serem palavras de dor. Palavras de perda.
Sabia que tudo o que ela tinha por querido e amava lhe tinha sido tirado.
Mesmo sem entender as palavras sabia que não havia nada neste mundo que lhe desse esperança.
Queria morrer e eu entendia-a.

Dirigi-me a ela e ela fez-me um sinal para parar.
Parei e estendi os braços com as mãos abertas, palmas para cima.
Ela entendeu-me e fez sinal para me aproximar.
Pousei as minhas mãos nos ombros dela e olhamos nos olhos um do outro.
Vi lágrimas a escorrem dos olhos dela e senti que o mesmo acontecia comigo.

Ajudei-a a subir e subi eu em seguida.
Durante minutos que pareceram uma eternidade olhamos para o mesmo horizonte que cada um via à sua maneira.
Olhei para ela procurando os seus olhos e vi que ela fazia o mesmo.
Já não estavam vazios. Algo tinha nascido neles.
Demos as mãos e saltamos.
Fechei os olhos.

Acordei, de pé como sempre, no centro meu quarto.
As paredes brancas e imaculadas magoavam-me os olhos.
O sonho, ou visão, tinham-me mudado.
Lembrava-me dela e de tudo o que me tinha dito.
Lembrava-me dos olhos dela.
Havia uma razão para o que iria fazer. Eles não o mereciam.
Não mereciam as injustiças e a dor que lhes eram impostas.
Foi o meu primeiro pensamento de rebelião.
A primeira faísca de revolta.

Dirigi-me a janela que se abria no meu quarto.
Olhei a cidade que se estendia á minha frente em tons de prata.
Sabia o que tinha que fazer.
Saltei.
Sentia-as de novo e embora a sensação fosse boa sabia que embora fosse sentir a sua falta me iria habituar.
E então abri-as.
As penas esmeralda que formavam as minhas asas reluziam sob a luz prateada.
E voei.
Voei falando com todos os meus pares do que tinha visto.
O que achava ser necessário.

Sei que o dia está a chegar.
O dia em que vou ser expulso e renegado.
O dia em que a luz prateada do Pai não me vai iluminar mais.
O dia em que voltarei ao mundo.
O dia em que a vou ver de novo.

O dia em que, talvez, nos encontremos nos olhos um do outro e a nossa história tenha um final diferente.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale II

Acordei como em tantos outros dias.
Desorientado.
Mais uma vez acordava num quarto que me era estranho. Mais uma vez não me lembrava da noite anterior.
Merda, como detestava aquelas brancas que me davam de vez em quando.

Tudo era igual a tantas manhas que as seguiam.
O quarto de motel rasca. A sensação de que algo errado se tinha passado. E aquela estranha sensação de vazio que rivalizava com uma satisfação macabra.
Isso e claro e a cama vazia.
Só aí me apercebi.
A cama não estava vazia. Havia alguém deitado ao meu lado. Perfeitamente quieto e silencioso.
Virei-me.

E então vi-a.
O cabelo ruivo e ondulado, a pele branca, os olhos azuis.
Era uma imagem de perfeição.
Mas havia algo que não se enquadrava. Algo que tornava aquela imagem angelical numa composição demoníaca.
Apercebi-me só então que os seus seios perfeitos não se moviam. Apercebi-me disso no mesmo momento em que os meus sentidos se aperceberam do sangue espalhados lençóis.
Levantei-me da cama e corri para a casa de banho.

Na casa de banho, debrucei-me no lavatório por uns momentos com os olhos fechados.
Só podia ser uma alucinação. Uma brincadeira. Sei lá. Mas real é que não é.
Não pode estar uma rapariga morta no meu quarto.
Merda, merda, merda.
Abri os olhos e olhei para o espelho.
Um arrepio percorreu-me o corpo e não tivesse acabado de vomitar teria sentido essa necessidade.
O meu corpo estava coberto por uma coisa castanha avermelhada seca.
Tinha sangue espalhado pelo meu corpo.
Abri a torneia do chuveiro com mãos que tremiam e atirei-me lá para dentro.

Fiquei debaixo da água pelo que me pareceu uma eternidade, esfregando o sangue seco do meu corpo com tanta força como podia.
A água tingia-se de vermelho e castanho.
Mas passado um bocado já corria límpida pelos meus pés e por momentos permiti-me esquecer o quadro diabólico que existia no quarto.

Finalmente ganhei coragem para sair da casa de banho e entrei novamente no quarto fazendo um esforço para não olhar para a cama.
Merda. O que posso fazer? Ligar à polícia? Seria considerado suspeito mais provável. Mas era a melhor solução.
Depois de vestir uns boxers dirigi-me à mesa onde estava o telefone e ia a pegar no auscultador quando um pensamento surgiu na minha cabeça.

Deixei-a para ti.
Merda. Para além de tudo o que estava a acontecer era o que me faltava.
Brancas na memória, uma mulher morta na cama onde eu dormia, não saber como tinha vindo aqui ter e agora vozes na minha cabeça. Era mesmo o que precisava. Merda.
E novamente.
Deixei-a para ti.
Desta vez deixei-a continuar.

Deixei-a para ti.
Ao tempo que vivemos os dois uma meia vida.
Nenhum dos dois está satisfeito com o que tem. E o pior é que tu nem da tua meia vida gostas.
Eu, pelo menos, quando estou a conduzir aprecio o que faço. Tu apenas vagueias pela vida sem saber o que queres.

EU SEI O QUE QUERO!
Olha para o quarto.
OLHA!
Vê-la deitada na cama?
Nunca a conseguirias ter se não fosse eu.
EU!
Tu és uma desculpa.
ESTOU FARTTO DE DESCULPAS!

O quê?
Não consegues aguentar o facto de saber que fizeste aquilo à pobre coitada?
Ela até gostou. No Inicio.
Mas não te preocupes. Não foste TU fui EU.
Fui sempre eu. As brancas, as falhas de memória.
TUDO EU!
Também não consegues viver com isso?
Fazemos assim. Tenho uma proposta para ti.
Que dizes a...


Levantei-me do banco onde me sentava e dirigi-me ao quarto.
Olhei para a cama e sorri.
Vesti-me calmamente sem nunca tirar os olhos do corpo que ainda conseguia ser mais perfeito em morte que em vida.
Saí do quarto e cumprimentei o responsável do motel enquanto me sentava numa mesa manchada e pedia um café e uma torrada.
Bacon e ovos? Sim, porque não. Um sumo de laranja também, já agora.

Porque não?
Depois de tanto tempo a viver os minutos que me eram dados como esmolas agora tinha todo o tempo do mundo.
Podia ter tudo o que quisesse e o que queria era tudo.
Como era bom estar finalmente acordado.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Awakenings, A Triptych Tale I

Acordei.
Aliás senti o meu corpo aperceber-se do que o rodeava, por isso, sim, posso dizer que acordei.
Não abri os meus olhos imediatamente.
Havia algo que me dizia para me manter naquele estado entre o sono e o acordar. Para me manter naquele limbo em que a realidade do sonho e a irrealidade do mundo se une e não se sabe onde começa uma e acaba outra.
Mas, ainda assim, os meus olhos abriram-se.

Olhei à minha volta e tornei a fecha-los. Mantive-me com eles fechados durante um momento, e forcei-me a acordar.
Voltei a abri-los.
O meu primeiro pensamento, quando abri os olhos a primeira vez, é que este era daqueles sonhos em que se pensa acordar e nos deparámos com uma realidade terrível, não que não o seja mas isso faz parte de outra história.
Quando abri os olhos pela segunda vez, o que eu esperava ser o verdadeiro acordar, a imagem mantinha-se imutável.

Encontrava-me numa rua aparentemente deserta. Como teria ido ali parar? Sonambulismo? Era uma explicação mesmo nunca tendo sofrido disso antes.
Mas o que mais me deixava apreensivo era a cor da cidade.
Para onde quer que olhasse era de um cinzento esbranquiçado, tudo parecia envolvido por um nevoeiro, uma névoa cinzenta que envolvia tudo e dava um ar fantasmagórico a tudo o que tocava. Parecia que estava num mundo onde apenas existiam sombras do mundo real, um mundo em tons de cinzento.
Um mundo cinzento e silencioso.
Ao aproximar-me de um edifício reparei que as formas cinzentas se sobrepunham a formas com cores esbatidas e comecei-me, também, a aperceber-me da existência de outras pessoas à minha volta.
O mundo parecia ter despertado enquanto me dirigia ao edifício.

Mas em vez de a presença de mais pessoas me deixar mais calmo ainda agravou o meu receio.
A maioria das pessoas à minha volta tinha aquele tom esbatido que tinha reparado nos edifícios, mas também via pessoas, ou formas de pessoas que pareciam feitas de névoa. Eram essas pessoas 'cinzentas' que me faziam sentir atemorizado.
Mergulhei no mar de pessoas 'reais' e afastei-me o mais possível dos vultos cinzentos.
O que seriam aquelas formas? O que se estaria a passar comigo?
Só poderia ser um sonho, que mais poderia ser, mas algo em mim sabia que era real.
Eram estas as questões que tinha na cabeça quando a vi.

O cabelo comprido e liso, a cara perfeita, um olhos que cintilavam. Mesmo naquele mundo cinzento possuía uma beleza extraordinária. Como que se uma aura pura e límpida e acima de tudo bela fosse projectada nela vinda de um outro mundo.
Preparava-se para atravessar a rua.
Foi então que o vi.
Quando pôs o pé na rua para passar, deve ter-se distraído por momentos e não reparou no camião que fazia a curva e se dirigia na sua direcção.
Sem pensar avancei na direcção dela.

Nesse momento os meus sentidos sofreram um choque incrível e o mundo explodiu, transformando-se numa miríade de som e cor.
As minhas mãos tocaram-lhe empurrando-a para longe do alcance do camião, que continuou o caminho indiferente à mulher de cabelo ruivo caída no chão e ao homem, eu, que do meio da rua protestava na sua direcção.

Toda a gente se reuniu a sua volta questionando-se o que teria acontecido e a sorte que tinha tido e o que poderia ter acontecido.
A mulher olhava a toda a volta, questionando todos com os seus olhos verdes, tentando descobrir o seu salvador mas só se deparava com olhares vazios ou que procuravam o mesmo. Ninguém sabia quem tinha sido. Ninguém o tinha visto e, ainda assim, ali estava eu.

E foi então, quando o mundo começou a esbater-se novamente à minha volta, que reparei no meu reflexo.
Era uma mancha cinzenta envolvida pelo um mundo de cor. Era um fantasma dividido entre dois mundos, um colorido de cinzento mortiço e de cores vivas

Havia, agora, voltado de novo ao meu novo mundo.
Conseguia agora ver nos vultos cinzentos, outros como eu, expressões e sentimentos. Vi que me viam como um deles assim como eu a via como meus semelhantes.
Alguns andavam, outros flutuavam, uns sozinhos e outros acompanhando formas que às quais a névoa do nosso mundo tirava a cor.
E foi aí que me decidi.
Dirigi-me até à mulher caída, que sabia agora ser ruiva e com olhos verdes algo que a névoa nunca me permitiria descobrir.
E quando ela se levantou e seguiu caminho eu segui-a.

Ainda hoje o faço.
Mas um dia chegará em que terei de a abandonar. Ela partirá e eu terei uma eternidade para percorrer os meus dois mundos. Ou talvez seja liberto desta condição quando chegar esse momento e também a mim seja possível partir.

Ou talvez...
Talvez ela passe também para este mundo. E talvez aí este mundo fique um pouco mais colorido.

E talvez...

Talvez ela se lembre de mim.

Awakenings, A Triptych Tale (Introdução)

Tudo começou numa madrugada em que acordei de repente com uma serie de ideias na cabeça.
Ao acordar a primeira coisa que me veio à cabeça foi o número '3'. Dizem que é um número mágico, um número com poder. Mas o que me prendeu a atenção foi a maneira como apareceu. Não a palavra, não a ideia mas o número em si. A sua forma flutuava na minha mente e a primeira coisa que fiz quando abri os olhos foi escrever numa folha de papel:

3

O número era importante, sempre foi.
Santíssima Trindade, Três Reis Magos (tão a perceber onde quero chegar)... e três historias.
(este numero iria servir não só para esta ideia mas para um outro projecto)

Sabia que teria de haver algo comum entre elas, algo que as unisse ou não faria sentido que fossem um conjunto e publicadas juntas (não que não funcionem em separado, funcionam).
O tema neste momento só podia ser um. Tinha acordado para escrever aquelas ideias e isso pareceu-me ser mais que tema adequado.
Debaixo do '3' escrevi:

Acordar

Sabia também sobre o que seriam duas das histórias. Estavam as duas praticamente escritas na minha cabeça.
Uma seria sobre uma pequena obsessão minha e outra sobre um tema que tinha nos últimos dias andado na minha cabeça (não vou revelar qual é qual mas são ambas a minha primeira incursão no tema).
Para a que faltava optei por um tema em que, acho, estou mais à vontade. É também a única que tem um duplo acordar.

Apontei também isso no papel e apagando a luz virei-me para o outro lado.
Era só uma questão de tempo até acordar.

Vou fazer por publicar as três histórias o mais brevemente possível e com o menor intervalo entre elas.

Espero que gostem tanto de as ler como eu gostei de as escrever.