Paulo desceu as escadas que davam para o Solar do Vinho do Porto.
Ao entrar acenou com a cabeça ao empregado que se encontrava atrás do balcão a limpar um copo com um pano branco. Virou à direita e dirigiu-se ao jardim.
A esplanada estava vazia. O dia não estava frio mas estava ligeiramente enublado. Paulo sentou-se numa mesa junto a sebe de maneira a conseguir ver o rio e a marginal de Gaia.
Este era um sitio com uma aura quase mágica. De um dos lados ficavam os jardins do Palácio de Cristal, do outro o Solar propriamente dito, atrás deste o Museu Romantico e à sua frente o Rio Douro.
Era o cenário ideal para escrever. Não tinha uma ideia à semanas e começava a sentir-se mal consigo próprio. Abriu o bloco em cima da mesa e com uma caneta preta escreveu a data e o local no inicio da página como fazia sempre. Assim saberia onde e quando escrevia o quê. Uma mania de escritor pensava sempre que o fazia.
Pousou a caneta e olhou a rio. Os barcos rabelos oscilavam sobre as ondas. Fechou os olhos e respirou fundo tentando sentir o cheiro da água. Deixou-se envadir por pensamentos. O que teria acontecido neste local ao longo dos tempos, o que poderia ter acontecido.
Uma voz disse algo. Abriu os olhos. Uma rapariga loira, vestida com uma saia preta e uma camisa branca e com um avental preto olhava e repetia:
- Que vai tomar? – dizia a rapariga.
- Um Portonic, por favor. – respondeu.
- Certamente. – disse a rapariga voltando-se para o edificio.
Tornou a fechar os olhos e desta vez os seus pensamentos eram mais precisos.
Dois homens frente a frente empunhando florins, um outro ligeiramente afastado servia de arbitro. Estavam vestidos com roupas proprias do seculo XVIII. Uma mulher soluçava na janela. Uma pequena multidão circundava-os espalhada pelo jardim. Sentia-se o cheiro a rio.
Outra.
Pessoas olhavam da sebe em direcção ao rio. Barcos ardiam ao fundo. Sentia-se o cheiro a fuma e a morte no ar. Canhões soavam no ar com uma força explosiva. Dentro do Solar os Nobres discutiam o que fazer. As forças inimigas reuniam-se deste lado do rio ao fim de 5 dias de resistencia pela parte doa portuenses. Tinham destruido a ponte D. João I para evitar a passagem para este lado mas os invasores tinham conseguido de alguma maneira passar e juntavam-se agora aos que tinham passado pela ponte férrea D. Maria.
Uma voz acordou-o dos devaneios.
- O seu Portonic. – disse a rapariga.
- Muito obrigado. – disse olhando-a directmante nos olhos cor de azeitona.
- É escritor? – perguntou.
- Sim sou. – disse. – Porque pergunta?
- Vi-o a escrever. Já tentei escrever também, mas nao consigo. – disse a rapariga ficando com um olhar triste. – Mas tenho muitas ideias. – o seu rosto iluminou-se.
- Eu por acaso não tenho tido muitas. Não tenho conseguido escrever nada.
- Não brinque comigo. Tem quase uma página desse bloco preenchida. – sorriu. – Desculpe, volto já.
Paulo olhou para a página e ficou espantado quando viu uma página quase completa na sua caligrafia. Nunca lhe tinha acontecido escrever sem se aperceber. Bebeu o Portonic e leu o que tinha escrito. Quando acabou franziu a testa e continuou a olhar para o bloco.
- Está assim tão mau? – ouviu a empregada dizer.
Reparou que ela tinha tirado o avental mas que trazia uma bandeja com dois Portonic.
- Não pelo contrário. Acho que nunca escrevi nada tão bom.
- Ainda bem. Estou na minha pausa importa-se que lhe faça companhia?
- Claro que não. Esteja à vontade
Ela sentou-se em frente a ele. Cruzou as pernas e soltou o cabelo. Ao faze-lo o seu corpo arqueou e ele conseguiu perceber o formato do seu corpo. Tinha o corpo de uma escultura grega.
- Trouxe-lhe um Portonic. Este tempo faz-me lembrar a minha casa. Até o cheiro no ar é parecido.
- A sério? – disse Paulo depois de agradecer a bebida. – de onde é?
- Da Grécia. Atenas para ser exacta. Vim para cá a tanto tempo que é como se este fosse o meu país mas nunca será a minha casa. E por favor não me trate por você.
- Só se também não o fizeres. – disse com um sorriso trocista. – Chamo-me Paulo.
- Muito prazer Paulo. O meu nome é Callie. É verdade que não conseguias escrever? Pareceste admirado quando te disse que tinhas escrito no teu bloco.
- Sim. Já não escrevia a algum tempo. – disse baixando o olhar reparando que tinha a caneta na mão.
De alguma maneira tinha escrito mais enquanto falava.
- Parece que já não tens esse problema.
- Parece que encontrei uma musa. Obrigado.
Ela sorriu e fez uma pequena vénia com a cabeça.
- Bem, Callie. – continuou. – Porque vieste para Portugal?
- Os meus pais mandaram-me. A mim e às minhas irmãs. Não para Portugal especificamente. Para o mundo. Tinha que ser. Não nos podiam manter na Grécia. Era como prender um passaro numa gaiola.
- Então tens irmãs?
- Sim. Ao todo somos nove já contando comigo.
- Grande gaiola que devia ser. – disse sorrindo. Ela riu.
- Sim mas tinhamos que sair da Grécia.
- E ainda tens contacto com elas?
- Sim. – o seu sorriso ficou triste. – ainda nos vemoz de vez em quando. Mas somos todas diferentes. Cada uma com o seu interesse. Eu, por exemplo, adoro livros e escrita e grandes épicos. Já a minha irmã Mel gosta mais de música e todo o que envolva sonoridade. Às vezes os interesses cruzam-se mas só às vezes e a maior parte do tempo somos só nós.
Algo na maneira dela falar fez as ultimas palavras parecerem referir-se a ele e ela. A maneira como ela tinha dito “só nós”.
Continuo a escrever. Pensou ele.
- Tenho que voltar ao trabalho. Gostei muito de conversar contigo. – como era atraente o sorriso dela.
- Eu também. Será que...– a sua voz parecia falhar. – Será que te posso convidar para jantar?
- Adorava. Esperas que saia?
- Claro.
Enquanto esperava as ideias não paravam. Se continuasse assim teria material para o resto da vida. Eram ideias dignas dos clássicos gregos. Histórias de heróis que sobrepunham todos os obstaculos. Algures na sua mente algo murmurava “O Senhor dos Anéis português”.
Escreveu quase as oitenta páginas do seu bloco entre meias ideias e capitulos inteiros. Quando Callie saiu levou-a a jantar ao Itamé, um restaurante japonês em Miguel Bombarda.
- Já estive no Japão. – disse ela enquanto se debatia com os pauzinhos. – Mas não experimentei a comida.
Depois do jantar e a medo ele fez a pergunta.
- Queres ir a minha casa?
- Claro. Pensei que não perguntavas.
E ao mesmo tempo disseram
- Não costumo fazer isto. – e riram juntos
Adormeceram abraçados com o brilho da lua a entrar pela janela do quarto.
Quando acordou de manha e não a viu pensou se teria sido tudo um sonho.
Virou-se e sentiu o cheiro do cabelo dela na almofada. Um cheiro a flores, mel e baunilha.
Estava um envelope pousado na almofada com “Paulo” escrito numa caligarfia antiga e perfeita.
Abriu-o sentindo-se como uma criança no dia de Natal.
Tinha apenas duas linhas escritas.
Nunca te esquecerei.
E tu terás-me sempre na tua escrita. Sempre.
E a assinatura em que ele nao queria acreditar.
A tua musa
Calliope.
Dirigiu-se até à sua mesa de trabalho e abrindo o seu bloco escreveu até a noite cair.